Aqui ou em qualquer lugar
Descrevo a mãe: nasceu na rua e logo conheceu seus receptivos donos, uma casal diferente, diga-se de passagem extremamente estranho. Sempre muito bem tratada, a ração e leite, sobrevivia em plena crises existenciais, desentendimentos e discussões artísticas. Até então isso tudo não à afetava.
Enfim, veio a primeira cria. O casal separou-se, cada um foi pro seu lado e aquele indefeso indigente, confuso e em plena amamentação, permaneceu. Afinal, aquele também era seu lar.
Logo aprendeu que pra sua segurança e auto sustentação teria que doar todos seus filhos. Chegava uma visita na casa, lá ia ela com todo amor e carinho empurrando o "ser" com a cabeça. Tudo era muito bem analisado antes do gesto; primeiro a mãe cheirava, para ter a certeza que seu filho iria ser lavado e bem cuidado higiênicamente. Depois, analisava sua postura diante da comida, se era uma pessoa que comia pouco, pra sobrar ao seu filho. Só então ela o oferecia.
Sem filhos, sem ração e leite, e agora, sem carinho também (pois sua dona já não tinha mais tempo, e também tinha seus filhos pra criar); aprendeu na rua o que poucas pessoas seriam capaz de aprender. Todas as artimanhas e sabores que a liberdade poderia lhe confortar.
Um pouco mais tarde, amou novamente. E lá veio a segunda cria... todo aquele processo novamente, dessa vez um pouco mais dolorido. Não pelos filhos, mais sim, porque dessa vez, sua dona resolveu ficar com um deles.
De primeira viagem, analisou sua trajetória, resolveu que deveria ensinar tudo que aprendeu a ele. Apresentou- o a todos os cheiros, sabores, a todos seus conhecidos, antigos amores, amigos, parentes, e, por fim, o ensinou a se defender.
Agora eram mãe e filho, parceiros, companheiros, eternos amigos. Aqui redescobriu sua infância, suas traquinagens, suas brincadeiras, faziam tudo juntos. O menino cresceu, a levou para lugares diferentes, fazia amizade com todos e a defendia quando necessario, tudo na base da conversa.
Nessa altura já não se preocupava com seus donos, só ia pra casa com seu filho pra dormir. De vez em quando, pra demonstrar gratidão, acompanhava- os em caminhada.
Após todo o processo de aprendizagem, tanto pra ela, quanto pra ele, visto que não tinha mais o que fazer, passaram se meter na vida dos outros. E avançavam com toda segurança em todos os seres que "não iam com a cara", menos aqueles que realmente poderiam oferecer perigo. Sempre, sem tomar atitudes drásticas...
Um exemplo: o carteiro, que apartir daquele momento passou a andar com duas pedras na mão. Todas as vezes que precisava passar pela rua juntava suas belas pedras pra sua proteção. Afinal de contas, ele também tinha suas dívidas, e precisavam cumprir sua meta estabelecida, para poder receber seu salário.
Todos resolveram tomar a mesma atitude que o carteiro, e passaram a andar com suas pedras nas mãos, sem nem saber se eram necessárias serem lançadas.
Seus donos também passaram a andar com duas pedras na mão: pra espantar ladrões( porque já não tinham a segurança que mãe e filho passavam) e pra espantar eles próprios (que agora só os acompanhavam por impertinência).
Viraram dois seres impertinentes que todos se protegiam com "duas pedras na mão". Mas nunca lançavam.
Aliviados, já tem seu lugarzinho na terra, pois aprenderam na rua o que não se aprende no céu: "Quem nunca pecou que atire a primeira pedra".