CICATRIZES VIOLADAS

Acontece às vezes, muitas até, que as cicatrizes não são suficientes para esconder as feridas. Não há pranto justo ou tempo calculado que consiga implantar na ferida o definitivo selo.

Quando a ferida, mesmo sem qualquer incentivo, dúvida que a beneficie, resolve crescer, ressurgir de alguma oculta tumba e rasgar a pele, alcançar a superfície, não há abraço que traga consolo, não há leito que acolha, não há ilusão que embriague, não há chão que ampare.

E as nossas mãos não conseguem, mesmo ensaiando, alcançar em qualquer meta, função ou outorga algum sinal de afago. E o nosso peito, outrora, altivo, robusto, não se infla mais com o peso das medalhas, apenas se curva, adquire pavorosa e definitiva corcunda. E o nosso corpo, sem temperatura, sem previsão ou tremedeira, não se rende ao abraço, não encontra no beijo seu instante de gula. É apenas um corpo que protege do mundo, dos monstros, das alucinações uma alma em estado de jejum. Um jejum que não definha, um jejum que até se incorpora, possui, se apodera.

As noites estão cada dia mais silenciosas, mas de um silêncio que impõe pavor, pânico. Um silêncio que se reveste de tirania, que isola, segrega. Não há qualquer calma na forma de ação desse silêncio. É um silêncio que rouba, que aparta aquilo que ainda uso como bálsamo para me curar, aquilo que ainda me conforta mesmo sendo uma música que ninguém mais ousa tocar.

Aprendi não sei em que ponto da vida que para as feridas da alma não há cicatrizes definitivas. Por mais habilidosas que sejam as mãos sempre vai restar uma brecha, uma imperfeição, um vão, por onde a ferida, acordada de repente, sem qualquer pretexto ou decreto, resolve suplantar todos os curativos, ignorar todos os unguentos e, se impor como uma verdade que não queremos respeitar.

É tênue a camada que guarda a ferida. Não a destrói, não a aniquila. Apenas a isola, a cobre, a veste como uma espécie de camisa de força. Uma vestimenta que a qualquer momento se desbota ou se desgasta, que se desgarra de sua missão.

E não sabemos o que sentir, não sabemos se é honesto se revoltar ou lançar o mais profundo desprezo. Um e outro são igualmente desonestos. Honesta é apenas a nossa necessidade de escolher por qual razão devemos chorar.

Como uma canção que nunca mais vamos ouvir ou um quadro que não queremos mais admirar ou uma oração que não mais desejamos balbuciar. E mesmo assim ainda dói, ainda nos arrebata uma lágrima, ainda nos arrebenta uma certeza, nos arranca do coração um pedaço que não sabíamos que existia.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 20/04/2010
Reeditado em 20/04/2010
Código do texto: T2208315