Um casamento muito psicodélico

Minha amiga-praticamente-irmã Dadah, como todo jovem que se prezasse nos idos dos anos 70, era bem riponga, pó-dis-crêe! E, como boa riponga, falava acentuadamente riponga, saaca?, o que era reforçado pelo sotaque beeem carioca que, ao contrário de mim, que morava aqui em Brasília desde o começo da aborrecência, ela ainda tinha preservado. Isso até se casar com um gaúcho, daqueles que falam gauchês legítimo. Então a fala da minha amiga passou a ter umas entonações e expressões agauchadas, como era de se esperar.

Mas isso rolou depois. O que eu vou contar aqui é o que se fixou na minha memória, um tanto instável e volúvel, sobre o dia do casamento de Dadah. Claro, ela me ajudou um bocado nesta tarefa.

Éramos um quarteto de amigas inseparáveis, como descrevi na crônica "Dru, Dadah, Marceta e eu". Então, quando ela se casou, naturalmente convidou a gente pra ser madrinha e, claro, a gente topou no ato.

Sendo a Dadah a riponga que era, seu casamento jamais poderia ser uma cerimônia tradicional ou muito comportadinha. Na verdade, o casamento foi uma exigência dos pais do Paulo, que não queriam saber dessas modernidades de "ir morar junto".

Pra começar, a Dadah queria porque queria que fosse ao ar livre e conseguiu de uns amigos do pai do noivo, que moravam no Lago Sul, que emprestassem a sua casa, mais especificamente o jardim de sua casa, pra ser o local da cerimônia e da subsequente festa, tudo à luz do dia.

Acontece que o padre, que era amigo da madrasta de Dadah e por isso foi escolhido pra oficiar a cerimônia, e que já havia topado a coisa toda, em cima da hora recebeu um comunicado dos seus superiores hierárquicos (nenhum deles sendo Deus, importante frisar) dizendo que não poderia se realizar a dita cuja num jardim, local profano e inadequado segundo eles. Daí não teve outro jeito, a não ser aceitar as condições impostas e fazer o casamento na igreja e com o padre próprio da dita igreja, como manda o figurino ou a liturgia, não sei bem.

Aí foi um corre-corre das famílias dos noivos, dos padrinhos e dos próprios noivos. Toca pra igreja do Lago Sul (creio que só havia aquela, perto da ponte "velha", nessa ocasião). O resto dos convidados e o padre amigo da família ficaram na casa, esperando todo mundo voltar.

Tente dobrar a vontade de um leonino, se for capaz! Ambos os noivos eram (claro, ainda são) leoninos.

Estabeleceu-se, então, que haveria o casamento na igreja e uma segunda cerimônia no jardim da casa e tamos combinados. De modo que a Dadah e o Paulo acabaram se casando duas vezes no mesmo dia.

Só que, chegando na igreja, ficaram sabendo que iria ter outro casamento ou algo assim, de modo que só restou uma saleta da casa paroquial. Fazer o quê? Vai assim mesmo. E o pessoal que se esprema lá dentro.

Enquanto tudo isso acontecia...

Eu e Zé-merval fomos com a Marceta, no seu bom e velho fusquinha branco. Nossa amiga e motorista teve uma série de contratempos inescapáveis naquele dia, de modo que já estávamos bastante atrasados quando, no meio do caminho, furou um pneu... só mais um contratempo pra série...

Tá bem, nenhum de nós estava vestido com toda aquela chiqueza de praxe pra ocasião. Na verdade, estávamos até bastante arrumadinhos e cheirosinhos no capricho, mas com as nossas melhores roupas ripongas (eu e Marceta usávamos vestidos indianos, típico uniforme riponga, apropriadíssimo pra duas madrinhas de um casamento riponga) e o Zé-merval, que seria padrinho junto com a Marceta, vestia roupas claras, se não me engano, de tecido fino. Estávamos a anos-luz de qualquer posto de gasolina e o Zé-merval teve que se virar pra fazer a troca do bendito pneu sem se sujar nem se amarrotar muito.

Eu fiquei tão agoniada com isso que a minha adrenalina subiu a mil! Daí a minha memória deste dia ter ficado um tanto prejudicada. Confesso que não me lembro muito bem de como as coisas transcorreram neste impasse, só sei que devo ter fumado um cigarro atrás do outro e exercitado à exaustão cada panturrilha com o bater alternado ora de um pé, ora do outro. Detesto chegar atrasada seja lá onde for e detestei mais ainda na única ocasião em que seria uma das madrinhas de um casamento. Ainda mais no casamento de uma das minhas três melhores amigas. Afinal, noiva tudo bem, mas madrinha não pode se atrasar de jeito nenhum! Que dirá duas madrinhas e um padrinho e, ainda por cima, sujos, suados e amarrotados.

Sei que chegamos esbaforidos na tal igreja e o casamento já estava começando, o padre não podia esperar. Meu coração batia na garganta e não registrei quase nada da cerimônia. Só me lembro de ficar olhando pra Dadah e pro Paulo e a ternura imensa que sentia por eles ir me acalmando aos pouquinhos.

Da igreja, fomos todos pra tal casa onde haveria a segunda -- e real -- cerimônia.

Estava tudo lindo: gramado impecável, flores espalhadas nos canteiros e arbustos, árvores aqui e ali, uma mesa ao fundo coberta por um tecido imaculadamente branco, que serviria de altar, a piscina limpíssima refletindo o azul do céu... e um monte de ripongos, pra onde se olhasse, com suas roupas elaboradamente despojadas e coloridas, seus jeans desfiados, seus sorrisos abertos, suas posturas relaxadas, andando de lá pra cá em confraternização com seus semelhantes. Era praticamente um Festival de Woodstock candango. E no meio disso tudo, os um tanto espantados e conservadores pais do noivo, alguns tios, os donos da casa, bem como os tranquilíssimos e acostumadíssimos pai e madrasta da noiva, vestidos feito gente-decente-que-vai-num-casamento-decente. Ou seja, caretas.

Só então fiquei sabendo que os noivos chegaram à cerimônia de moto. Se a Dadah ficou descabelada ou não, nem me lembro. Até porque todos nós éramos um tanto ou quanto descabelados e cabeludos naquela época. Mas me lembro que ela estava linda na sua roupa finamente riponga -- saia e bata indianas brancas, sandálias de barbante trançado e muitas margaridas de verdade enfeitando os cabelos. E que o Paulo estava um gato (cabeludo, naturalmente) de calça e bata indianas, igualmente brancas, brincos nas orelhas e... tênis brancos. Dos quais se livrou assim que chegou ao jardim da cerimônia II - a missão, ficando descalço o resto do dia.

Na hora da dita cerimônia, nosso amigo Caloro (assim mesmo, sem "u") empunhou o violão e tocou e cantou, acompanhado por mim e mais alguns, inclusive a noiva, uma versão inspirada de Cio da Terra, do Milton Nascimento. Foi emocionante!

Acontece que o padre amigo, durante o tempo que ficou esperando o pessoal voltar da igreja, pra passar o tempo resolveu tomar alguns canecos de chope... o que resultou num estado de espírito relaxado, bonachão e t e r r i v e l m e n t e verborrágico. A cerimônia, que era pra ter sido breve, acabou se arrastando por séééculos! O Caloro teve que repetir a música ad infinitum e muitos dos convidados, já cansados, sentaram-se pelo gramado e ficaram olhando pro céu, acompanhando talvez o movimento dos pássaros e aviões que passavam sobre nós. Os noivos já estavam quase dormindo em pé, coitados...

Pra finalizar, lá pelas tantas da divertida festa que se seguiu, vi uma menininha de no máximo uns dois anos de idade, a quem eu não conhecia, devida e lindamente vestidinha como riponguinha mirim, debruçada perigosamente na beiradinha da funda piscina. Eu, delicadamente, cheguei perto dela e aconselhei que se afastasse da beiradinha. Nisso chegou a mãe dela, que depois fiquei sabendo ser a mulher do padrinho que fez par comigo (a quem eu pouco conhecia, por sinal), e disse:

-- Ah, não tem perigo, não, cara... A Iaci já sabe nadar...

-- Perdão, como é mesmo o nome dela? -- eu perguntei espantada.

-- É Iaci, nome tupi-guarani que -- a mãe começou a explicar e eu, de tão excitada com o fato de conhecer uma das raríssimas minhas homônimas, a interrompi num impulso, dizendo contente:

-- Ah, eu sei! Adivinha qual é o meu nome?

A Dru e o Vuca, que seriam o outro casal de padrinhos da noiva, precisaram viajar nem me lembro mais porquê nem pra onde e, naturalmente, não estiveram presentes à cerimônia. Pelo menos não fisicamente, mas a Dru até hoje garante que estiveram lá em espírito e que é madrinha por direito. E eu acredito. Embora lamente que eles não tenham se divertido tanto quanto a gente.

:)

N.A. - O termo "riponga" aqui está sendo usado na sua antiga acepção, que significa "hippie". Aliás, eu nem sabia que atualmente existe esta outra, bastante depreciativa por sinal, significando "baranga" e outras coisinhas desagradáveis como essa. Queridos leitores, por favor, atenham-se à primeira acepção, sim?

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 20/04/2010
Reeditado em 21/04/2010
Código do texto: T2207901
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