Júri "Pesado"

Era uma tarde de domingo calorento e eu aproveitava para saborear um sorvete de açaí. Já ia saindo da sorveteria, quando me encontro com meu dileto amigo Joel, mais conhecido como Dr. Vandim, advogado criminalista e emérito tribuno de Júri. Como sempre acontece quando nos encontramos, relembramos fatos interessantes sobre o tribunal do Júri. Recordamos o livro famoso, esgotado, do grande criminalista Alfredo Tranjan, “A beca surrada”. São muitas as histórias de Júri: cômicas, dramáticas, tragicômicas. O Júri, que defendo com ardor, única instituição realmente democrática, oferece ao cidadão comum a oportunidade de julgar seus pares. Por outro lado, dá ensejo a situações muito curiosas, pois tem um lado muito teatral. “A beca surrada” narra muitas dessas histórias. No interior do Brasil, então, acontecem coisas inacreditáveis, em termos de Júri. Por aqui mesmo, na região onde moro, às vezes, pelas dificuldades de acesso, em certos grotões, o advogado chega ao Tribunal conhecendo muito pouco do processo, quase sempre sem pagamento, e tendo que produzir uma tese de defesa aos “trancos e barrancos”. A estória que agora tento narrar, e que me foi contada pelo Vandim, bem poderia constar do livro do Tranjan. Conversa vai, conversa vem, o Vandim me conta, rindo muito, a história que o seu colega Raimundo Café lhe segredara, ao atuar em um Júri, numa pequena cidade, tendo ocorrido um incidente curioso entre ele, Raimundo, advogado de defesa, e o Assistente de Acusação. Tratava-se de um homicídio consumado, considerado hediondo pelo Promotor. Após uma acusação competente e muito dura, tanto por parte do Promotor de Justiça, quanto pelo Assistente de Acusação , foi dada a palavra ao Raimundo, para a sua contestação. Atuava como advogado dativo, pois o réu não tinha onde “cair morto”. Dizia o Raimundo para o Vandim: - nobre colega, foi um Júri “pesado”(passando a mão em concha por todo o seu rosto, desde a orelha esquerda e terminando o gesto no queixo). Imagine, nobre colega, que o Assistente de Acusação que atuou contra o réu é um advogado muito experiente, com mais de 40 anos na profissão, tendo sido meu professor no ginásio. E o Promotor, uma verdadeira “fera”. Os dois arrasaram com meu cliente. Júri pesado, meu amigo!(passando a mão no rosto). – E como foi a sua fala?- indagava o Vandim.- Bem, comecei saudando o Dr. Juiz Presidente, o Promotor, o Assistente de Acusação, bem como os circunstantes que se encontravam no plenário. Disse, então, que o Egrégio Conselho de Sentença tinha que olhar para o réu como um velho trabalhador, e não como um monstro, um “ferrabrás”, como insinuou a acusação. E aí, nobre colega, depois de muitas considerações de ordem sentimental, “piriri, pororó, qui virô, qui totô”, arrematei: o réu, senhores, além de trabalhador, já com os cabelos grisalhos, tem o corpo corcomido pelo tempo. Ah! nobre colega, assim que terminei de pronunciar a palavra corcomido, o assistente de acusação se levanta num pulo só e me pede um aparte, que, lógico, inocentemente, concedi. Disse o Assistente: “ o advogado de defesa, Dr.Raimundo, acabou de pronunciar a palavra “corcomido”. Posso garantir, de acordo com a etimologia da palavra, que em nenhum, nenhum dialeto, em nenhuma língua do mundo existe a palavra “corcomido”, mas sim carcomido”. – Meu amigo Vandim, Júri pesado! Mas não me dei por vencido. Foi aí que Deus me inspirou e aquele aparte do Assistente me deu mais força ainda. – O que você falou? – perguntou o Vandim.- Veja a beleza da minha resposta, nobre colega, deixei o homem de “calça curta”. Repliquei: Meus senhores e minhas senhoras, já fui aparteado por mais de cem vezes neste Tribunal e esse aparte que recebo foi o mais feliz e o mais esclarecedor, sabem o porquê? Porque somente hoje, após cinco décadas, é que tomei conhecimento de que o vocábulo correto é carcomido. E o Assistente de Acusação foi exatamente o meu professor de português, tendo adquirido todos os meus conhecimentos gramaticais diretamente de suas sábias aulas. – Sensacional, Raimundo! O que disse o Assistente, depois dessa? – Meu nobre colega, naquela altura dos acontecimentos, a platéia deixou de se interessar pela sorte do réu, queriam ver quem ganharia o duelo de oratória entre o Professor e o seu antigo aluno. Pois bem, ele treplicou, imediatamente, dizendo: “É verdade que o Dr. Advogado de Defesa foi um dos meus milhares de alunos há 50 anos, mas, aqui, nesta oportunidade, quero, com todas as letras, registrar e ressaltar para todos os presentes e para toda a eternidade que dentre todos os meus milhares de ex-alunos, o único que escrevia e pronunciava “corcomido” era Vossa Excelência! - Pois é, Vandim, Júri Pesado (e passava a mão desde a orelha esquerda até o queixo). Nesta altura, o Vandim, não podendo mais conter o riso, fez a pergunta fatal: - E como terminou este Júri? Como você se saiu? A resposta veio firme, tranqüila e sobranceira: - Eu? Eu me saí muito bem! O réu é que pegou 28 anos de reclusão, em regime fechado, mais dois anos de medida de segurança. Júri “pesado”, Vandim!