Açucar mascavo

Ela já sabe o que vou pedir, não é preciso dizer novamente. Prepara o café-curto da maneira como eu gosto. Deita a xícara sobre o balcão sempre limpo. Mas, outra vez mais tenho que pedir o açúcar mascavo, o que já me incomoda. Claro que vai do estado de humor que estou, o que resultará no grau de paciência. Não preciso informar como estão estes ingredientes em mim. Mas fica o aviso de que não se deve esquecer das intensidades. Meu humor não está dos piores.

Não há pão de queijo, e não é a primeira vez que se dá tal falta. Habilmente, ela me oferece bolo de laranja como opção, garantindo plena satisfação. Somos indelicados em utilizar um outro cliente como referência. Aceito a sugestão e sigo certo de que não é bolo velho.

Ao caixa, o senhor que teme olhar e sorrir se esquece de cobrar o bolo. Aviso-lhe do equívoco para que a indicação a contento não fique sem a devida e merecida cobrança. No país da malandragem, querer levar sempre vantagem não é prerrogativa de todos, felizmente. São aqueles que sabem que tal comportamento fecha portas, afasta pessoas.

Quando adentrei ao Café aqui mencionado, não demorou e percebi que caçava uma história. Logo que vi o único assento livre para me sentar ocupado pelo pacote daquela mulher, senti certa contrariedade. Assim, foi proposital ficar ali em pé ao lado dela. De qualquer forma, atitude gentil esperada ela não tomou. Sentia-me no direito e por um instante pensei pedir licença de modo até irônico, mas não o fiz. Minha comunicação deveria ser apenas com o corpo. Assim mesmo, olhei para o lado a fim de fazer avaliação que fosse, sem creditar nisto qualquer certeza. Aliás, deixemos as certezas para os idiotas, conforme ensinou o intelectual. Ao ver que se tratava de uma senhora de idade, aparentemente tranqüila em seu mundo, abracei a compreensão e abandonei minha guerra particular. O homem ao lado se levantou e se dirigiu para o caixa. Puxei o banco de madeira que ele abandonara e me sentei. Não me recordo se a senhora se foi primeiro do que eu.

O corpo comunica, todos sabemos disto. Gestos podem contradizer palavras. Por isso, não me fio tanto a discursos. Necessito avaliar as atitudes. Diversas vezes percebo o engodo. Em outras, avalio de forma equivocada. E, claro, todos nós seguimos assim, entre acertos e erros sobre os outros. Desavisados e errantes os que carregam consigo a plena certeza em suas avaliações. Piores aqueles que utilizam cartilhas para decifrar a alma alheia.

Certa vez, em numa conversa virtual, uma colega psicóloga fez uma afirmação a meu respeito. Baseou-se no que eu havia dito sobre uma ex-namorada. Fizera ali a explanação de sua teoria. Firmara contrato com a “certeza”. Sua precipitação, bem como o uso da superficialidade para fazer uma avaliação, deixou-me um tanto indignado, embora nada surpreso. Não era a primeira vez que ouvia de uma profissional da alma precipitações e superficialidades. Sempre depositei nisto o baixo nível filosófico da pessoa, bem como a necessidade de aplicar os conhecimentos obtidos durante sua formação, para os quais muitos dão, equivocadamente, caráter absoluto. Felizmente, há bons profissionais no mercado, mas de certo custam caro, não são para todos.

Penso que as pessoas refletem o que são. Mas não significa que podemos avaliar baseados no pouco que ouvimos, em dada circunstância. Aprendi com um jornalista que o ser humano é absolutamente circunstancial. De modo que, é preciso esperar outros momentos para saber mais quem pode ser aquela pessoa, sem, contudo, atingir a exatidão. Quantos vi vendendo felicidade naquele primeiro contato, para depois perceber enorme infelicidade? Quantos ainda verei?

Confesso certo cansaço em ver as pessoas se referirem às outras com tantas certezas, tantas pedras. Algumas fazem tamanhas generalizações que diminuem o ser humano a simples produtos pré-programados. Aprendi que poucos são aqueles que podem ouvir e ajuda-lo a entender questões relacionadas a um outro. A maioria vai mesmo é atirar pedras de modo insano. É como se estivessem diante de um trágico e inaceitável espelho.

Na sociedade dos discursos é preciso ficar atento aos que vivem no palanque. São como políticos que dizem o que você quer ouvir, mas que pouco interessados estão em promover crescimentos, quais sejam. Lembrando que na eterna campanha da vida, este que escreve também é candidato. Por vezes, pode se equivocar sem perceber, fazer discursos desconexos com sua realidade. De qualquer forma, guarde suas pedras para você. E aprenda a gostar do espelho à sua frente.