Um sapatinho no cafezal

No final dos anos 40 do século passado, houve grande migração para o Norte do Paraná. Nova fronteira da cultura do café, a famosa terra roxa, que dispensava o adubo, atraiu um grande contingente de fazendeiros mineiros e paulistas. Nós, paranaenses, brincávamos com o resto do Brasil:

-Querem plantar café? - Leve nossa terra como adubo.

A minha família de raízes mineiras participou desta migração. Um tio vendeu sua pequena propriedade no sul de Minas com a porteira fechada, seu gado leiteiro, seus animais de monta, e cheio de esperanças foi nesta leva.

Chegando à região de Santo Inácio se encantou com o tamanho dos pés de café. Procurou os corretores e começou a visitar as glebas a venda, não tinham muitas, a terra estava muito valorizada, mas a muito custo achou um pedaço de chão que o satisfazia, com muita mata virgem, aguada boa e terra roxa.

Fez o negócio despendendo de quase todas as suas economias, muita fé no futuro e na terra. Pensou, enquanto o café cresce, eu planto entre as ruas feijão, arroz, abóboras e engordo uns porquinhos para o sustento da família. Vou levando a vida até chegar a colheita do café.

Foi buscar a família. Convidou amigos e irmãos a compartilhar desta aventura. Num pequeno caminhão ajeitou a mudança, arrumou espaço para os filhos e a empregada na carroceria. Enlonou a camionete como "pau de arara". Fez muitas matulas para a viagem, com galinha cozida engrossada com farinha de milho, rapaduras para sobremesa e adoçar o café , biscoito fofo de polvilho, queijo meia cura e doce de leite em pedaços. Queria levar um pouco de Minas junto.

Quando chegou ao pedaço de chão improvisou um rancho com a lona que cobria a mudança. Planejou onde seria a sua futura casa. Com as ferramentas de quem transforma sonho em realidade se pós a trabalhar, sem feriados, sábados e domingos para descanso. Seu despertador era o sabiá laranjeira, que antes do sol nascer, iniciava o seu concerto. Parava somente para as refeições e exaurido quando o sol se punha.

Fez a roçada para o café, em cada cova muita esperança e fé, abria-se um buraco e punha a muda frágil com todo o cuidado para que suas raízes não se dobrassem e quebrassem, tomando cuidado com o prumo para que não crescessem tortas. Mudas feitas do melhor "Novo Mundo" do Brasil, café premiado em Londres e produzido no sul de Minas. Para sombrear a plantinha, gravetos da lenha nativa eram postas traspassando as covas e deixando frestas para os raios de sol passar, em cada uma, uma prece.

Entremeados nas ruas do cafezal, plantou, como planejara de início, feijão, milho, e abóboras e no chiqueirinho próximo da casa engordava os porcos, até que a esperança se transformasse em grãos verdes de café.

Passou um ano, dois, a esperança crescia na mesma proporção que os cafeeiros, as folhas muito verdes, talvez daí se tirasse o dito de que a “esperança é verde”. Tinha muito trabalho para conservar as ruas limpas, pois a terra era muito fértil e assim a mata sempre querendo se recompor fazia o mato crescer com facilidade.

Terceiro ano tudo bem para o ano que vem. As culturas alternativas eram suficientes para a alimentação da família. O café indicando uma boa colheita para o ano vindouro. O preço na bolsa de Londres indicava que teria lucro, sobretudo por não ter que gastar com adubos e fertilizantes.

Fez um empréstimo no Banco do Brasil para a construção do terreirão para secagem do café e a tulha para armazená-lo. O avalista do banco viu o capricho e o potencial da roça, sem criar problema aprovou o empréstimo.

No horizonte do céu azul de maio começa a se formar uma pequena nuvem sobre esta família, o filho caçula é acometido de uma leve febre, procurou-se o farmacêutico do povoado que receitou remédios para abaixar a temperatura, que não produziram o efeito esperado. Resolveu-se ir para Londrina atrás de recursos, procurou-se um médico, que não acertou o diagnostico correto e o menino com seus 6 para 7 anos faleceu.

O pai inconformado não quis que o filho ficasse nesta terra para sempre. Resolveu levá-lo para sua origem. O pequeno corpo é alçado ao céu, num avião monomotor de volta para Minas. Os irmãos e primos associam a ida do pequeno para sua morada eterna. Dor imensurável.

Dias depois, junho chegou e com ele uma geada que queimou todo o café do norte do Paraná. Minha mãe fez uma visita de condolências para o irmão em Santo Inácio, justamente no dia da geada. De manhã saem para ver o estrago. A roça antes verdejante, agora estava negra, os pés de café que carregavam o verde da esperança com os grãos de café já granando para a primeira colheita, estavam todos, sem exceção, queimados, negros.

Meu tio olha para aquele horizonte sem reação, minha mãe se aproxima e ele mostrou um sapatinho que o filho caçula deixou por ali, tocou o com o pé e disse:

Eu teria ficado muito triste com este trabalho perdido, mas agora, nada disto tem mais importância...

Este tio teve mais quatro filhos, um dia ele me falou: um filho por melhor que seja não substitui o outro.

A lição que fica: tem coisas que são importantes, mas outras são insubstituíveis.

Defranco
Enviado por Defranco em 14/04/2010
Reeditado em 27/02/2016
Código do texto: T2196865
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