Teimosia de Ana Maria
Ana Maria di Cássia completaria doze anos naquele próximo Outono, e quando sua mãe perguntou o que queria de presente de aniversário, Ana Maria, para a surpresa de Dna Rosa, pediu:
“Quero ouvir os parabéns...”
Pedido tamanho família... Claro que não para qualquer pessoa, aos reles mortais, dotados e até mesmo ingratos dos cinco sentidos da percepção, mas para Ana Maria di Cássia aquele era um pedido insólito. Momentaneamente, Dna Rosa a deu por enferma, ou de algum modo, embriagada e aos delírios, pois desde sempre, desde ainda embrião, sua filha única não podia escutar nem ouvir, nem palavras nem quaisquer outros ruídos. Era surda de nascença, mas nem por tanto tivera uma vida deprivada de sentidos e sentimentos. Como jamais escutara nenhum som emitido, sons não faziam parte de seu cotidiano e portanto não os estranhava nem sentia saudades. Naquele momento do pedido, todos os quase onze anos que lhe passavam pareciam esquecidos... Ana Maria queria algo novo, inédito... Mas, de onde tirara aquela idéia?
Com o passar dos dias e das semanas, a pequena família di Cássia tentava não estimular a curiosidade de Ana Maria em torno de sons e ruídos. Chegaram à conclusão de que uma das fontes inspiradoras do pedido insólito fora o movimento dos lábios, enquanto sinalizavam com as mãos. Apesar de Ana freqüentar apenas colégios para deficientes auditivos e ter em sua família uma maioria de surdos-murdos, o próprio movimento dos lábios ao qual estão acostumados quando em público ‘estrangeiro’ de sua condição, para melhor fazer-se entender, já seria o suficiente para que Ana perguntasse: ‘Por que abrem as bocas e mexem os lábios?’ Decidiram então usar apenas das mãos e dos dedos para a comunicação, e evitar que Ana Maria estivesse em contato constante com pessoas que não soubessem o idioma.
Desafortunadamente, para o Sr di Cássia e Dna Rosa, Ana Maria, com o passar do primeiro mês, escreveu uma nota e a deixou deitada ao colchão da cama. Nela, pedia: ‘Neste meu aniversário de Doze Anos, quero ouvir os parabéns.’ Assinava: AMdCássia
E assim, nenhuma outra resolução seria mais ou menos viável do que deixar de mover os lábios. Os pedidos passaram a vir com maior persistência. À medida que deixava seus onze anos, a menina amadurecia seus métodos. A cada nova hora de sua convivência com os pais, estes compreendiam melhor que de nada adiantaria explicar à menina de sua condição de nascença, mesmo porque ela sabia muito bem de suas condições hereditárias, pois com estas convivia mais do que com os pais. O fato é que sabiam de métodos interessantes, modernos, tecnologicamente perfeccionados para o melhor uso de deficientes auditivos. Para Dna Rosa e seu marido, já era tarde demais. Não havia o que fazer, pois seu cérebro desacostumado e dificultosamente regenerador pela própria idade, não aprenderia muitas das palavras ditas e teria dificuldade imensa em discernir entre a natureza dos barulhos, se um tiro ou gota d’água caindo ao solo. No entanto, para Ana, ainda menina, havia chances. Caso investissem no implante e em sua terapia, a pequena di Cássia teria a perfeita possibilidade de aprender a conversar, mas maior ainda, de ouvir seus parabéns no Outono, que já se aproximava mais um mês, gasto em divagações.
II
Foi então que começaram os protestos. Assim que os pais deram cabo prático à idéia e iniciaram a pesquisa, todos os surdos-mudos da comunidade e da família se deram o direito de opinar. Contra, é claro. Afinal, para quem não sabe o que é ruído, ruído não importa. Palavras todos temos, cada qual as usa como pode, e as de seu mundo se emitiam com as mãos e os dedos. Alguns, até liam lábios! Outros, tinham posições relativamente bem sucedidas na sociedade, e alguns até mesmo sucedidas sem relatividades profanas. Pois então, pensavam e diziam e protestavam, não podiam deprivar a pequena Di Cássia de seu mundo particular, de sua identidade surdo-muda.
Filosofando e pensando mais a fundo, o casal progenitor percebeu suas limitações e detectou a presença de medos próprios, antes mesmo de tanto manifesto. Isto pesava na decisão, mas esta ainda não fora feita. Vez, o pai decidia que sim e a mãe que não. Na outra era a mãe toda aflita, mas impulsiva demais, assustava o marido. No entanto, por alguns segundos ao dia, quando viam as notas deixadas cada um em um canto mais peculiar da casa do que o do dia anterior, consentiam concomitantemente.
A decisão foi tomada numa destas ocasiões. Ana Maria teve a oportunidade de vivenciar experiências novas com outros meninos e meninas de sua idade, portadores do implante e sequer conscientes da deficiência que marcava seus gens. Não foi algo fácil de se vivenciar, visto que estes meninos e meninas nem sabiam mexer as mãos e os dedos, apenas os lábios, mas deles não saía nenhum som, e Ana Maria, o que entendia? Nada... Apenas despertavam estes gestos insonoros maiores curiosidades em torno do ruído, tal ruído tão esquecido pelos acostumados a amar a deficiência como uma identidade. Ana Maria não a via como identidade. Queria ouvir os parabéns, e queria ouvir a chuva caindo no asfalto, e o vento rebatendo-se contra as folhas, e o ondular do mar quando quebra na areia e acidentes automobilísticos... ‘Isso não, menina,’ pediam os pais, ‘isso ninguém quer ouvir! Sai pra lá!’
Decidiram dar-lhe o implante, e nem deram chance a que os protestos dos familiares e dos demais participantes da comunidade exclusiva aos surdos-mudos se alastrassem. Muito pelo contrário, aceleraram suas locomotivas e logo a pequena fazia seus exames, frequentava o doutor enquanto os pais pagavam as contas, uma mais salgada do que a outra. Pouco tempo depois, estaria preparada para a tarde em que a cirurgia marcara-se sem desnecessários prolongares. Ansiosa, ainda antes de principiar os preparativos finais, pediu para escrever algumas palavras num papel. Concedido o pedido, escreveu:
‘Pai, mãe... Vou ouvir os parabéns!’
III
Outono chegando e o dia da aniversariante se aproximando a cada novo dia. Ana Maria ainda não discernia bem o que ouvia, mas já era menina mudada após o implante. Os primeiros efeitos foram notados logo após a cirurgia. Já se assustava com cada passo, cada mero clicar de lábios das pessoas que a circundavam. Medo. O medo do novo, diriam alguns quantos mais experientes. Ouvia as gotas da chuva, mas não as entendia. Ouvia o ruído dos carros e todos pareciam sofrer infinitos acidentes dentro de seus tímpanos artificiais.
Com o passar do tempo e o costume, matriculada em uma escola especializada em seu caso, aonde não se falava em gestos de mãos e dedos, mas em palavras como em qualquer outro colégio, a garota começou a dar seus ‘primeiros passos’ em direção à melhor comunicação. Os pais sentiam muito orgulho por suas conquistas particulares, e até uma pitada de inveja. Ana Maria não era mais ‘um deles’. Não pertencia mais ao mesmo universo, receiavam, mas deixavam os receios de lado e investiam no orgulho. Já os demais familiares e integrantes daquela comunidade peculiar, não sentiam o mesmo. Demoraram muito para se acostumar com a idéia de que Ana Maria não percebesse mais o universo como eles e elas percebiam. Demoraram, mas com a pequena cada dia mais velha, acabaram aceitando a evolução da menina, obviamente que, cada qual de acordo com sua capacidade receptiva e egocentrismo, estas deficiências mais sérias, as da psique humana.
No dia do aniversário, finalmente, se reuniram todos os colegas da escolinha, e todos os familiares, e todos os integrantes da peculiar comunidade, e ainda mais um ou dois bisbilhoteiros dos lados de fora. Ana Maria brincava e brindava sua nova condição. Não tinha mais medo. Coragem de novo.
E, por fim, na hora dos parabéns, todos se puseram de pé em volta da mesa arrumada com o bolo e os quitutes. Todos se puseram de pé para cantar o que a pequena quisera ouvir desde que decidira não mais aceitar ser deprivada da música, da voz sedutora, dos especiais ruídos que colorem nossos cotidianos elementarmente, mas nem a todos, como não, outrora, à Ana Maria. Cantaram:
‘Parabéns a você... Nesta data querida... Muitos anos de vida... E pra ela nada! Tudo (um de fundo dizia, nada!)... Então como é que é (não é!)? ... É hora, é hora, é hora... Tchim, bum! Aninha! Aninha! Aninha!’
Ela sorrira, mais do que nunca. Dentes expostos, olhos brilhantes, estava feliz.
Quando, menos de hora passada, sua mãe perguntou o que sentira com os parabéns, Ana Maria foi monossilábica: ‘Não ouvi ‘parabéns’, mas ouvi o ruído das palmas e a música. Estou feliz, mãe.’ Confessava. Sua mãe respondia: ‘Ano que vem, Ana Maria, você ouvirá até o ‘parabéns’’ Também sorria. Todos sorriam. A noite sorria. Ana Maria não mais pertencia ao mundo do silêncio, e sem nenhum silêncio, celebravam todos com’um só.
Três décadas se passaram, mas naquela tarde, sentada a frente do senhor Lipton, se lembrava bem dos passos tomados, um a um, até chegar a sentar naquela poltrona e responder tantas perguntas de uma platéia admiradora. Quando James Lipton a convidou à entrevista no programa Inside the Actors Studio, Ana havia ganho seu primeiro Oscar e dirigido seu segundo longa-metragem. Especializada, claro, em efeitos sonoros. Nas últimas dez perguntas há uma, em particular, que vale a pena mencionar.
‘Qual é o seu som preferido?’
Sem titubear, e sorrindo, um sorriso maroto que não sorria há três décadas tão bem acompanhada, respondeu:
‘O som da cantiga de parabéns.’
Lipton não entendeu muito, nem sua platéia. Em casa, assistindo à televisão estavam reunidos alguns de seus familiares e amigos da comunidade. Assistiam com legendas especiais a deficientes auditivos. Assistiam com orgulho. Eles sim, entenderam tudo. E respiraram aliviados pela teimosia de Ana Maria.
RF
(Inspirado em um excelente documentario, pesquisando eu ainda trago o nome, porque peguei o bonde andando na locadora perto de casa). Todos os direitos reservados, Maio de 2006