O DIA EM QUE MORRI
Foi bem assim no meio da página 190, exatamente na palavra “desembaraçado” de “Quando Nietzsche chorou” que eu morri. E não doeu nada (certa vez, li numa revista que morrer é muito dolorido). Ao contrário, foi apenas como “um céu que pouco a pouco anoitecesse / e a gente nem soubesse que era o fim” como lá no poema de Quintana. Debrucei-me sobre a mesa, a tarde anoiteceu e fui me despedindo da pessoa que fui e do mundo em que vivi.
Assim que percebi fechei o livro. Dei uma volta pela casa. Visitei pela última vez todos os quartos. Encostei as janelas, olhei os retratos sobre o console. Pessoas que por muitos anos me sorriram. Minhas companhias neste plano terreno. Dei-lhes um derradeiro adeus e deixei-as ali em suas fotografias. Não assim, estáticas, eu quero lembrá-las. Mas vivas, em mim morta, com seus risos quentes...
E foi tudo sereno e lindo do jeito que eu queria. Sem velório público, sem choro, sem lamentações (para quê lamentar alguém que se foi tão em paz)? Sem notas fúnebres no jornal com aquela cruzinha triste. Sem sino dobrando, sem anúncio radiofônico, sem carro de som nas ruas (certa vez um aluno achou um CD na rua e colocou-o pra tocar “a funerária Bom Fim anuncia o falecimento de Maria Eduardina Pimentel e convida...). O coitado ficou traumatizado por uma semana. Imagina, se quero isso... Um CD do meu sepultamento atirado na rua, ao deus-dará...
O corpo na sala, sem visitação. Afinal ninguém ficou sabendo. Só para eximir qualquer dúvida sobre o real estado de morte. Coisas que inventam. Ao redor, poucas pessoas, apenas as indispensáveis. Também sem flores, nem maquiagem, nem mortalha encomendada. Duas grandes velas ardem, por causa da luz que eleva a alma. Ao fundo, Jesus emerge placidamente azul, com seus braços estendidos. No silêncio reinante meu salmo de todas as manhãs irrompe sereno na voz de alguém que conhece tudo de mim: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”... Tudo assim, simples como sempre fui...
Descartado o risco do estado de catatonia, o destino final. O endereço não é o “Campo da saudade”, onde em certo jazigo, letras douradas em alto relevo destacam “Família Miranda”. Sigo para o “Campo da paz”. Lá é terra, santa terra “... porque és pó, e em pó te hás de tornar” . Alguém, acaso, já leu “e em granito, ou em concreto te hás de tornar”? Mudam demais as coisas, desvirtuam tudo. Vai ser do jeito antigo, mesmo que não seja verdade. As lápides com sua suntuosidade e suas palavras vãs nada dizem a quem nunca esteve debaixo delas...
Hum ... Só um receio: sofro de claustrofobia. Sempre fugi de aglomerações e ambientes fechados. Será que vou ter alguma recaída? Sorrio meu riso etéreo “deixa de ser boba, você não respira mais, esqueceu”? Puxa, é mesmo! Aliás, ainda penso? Estou muito confusa. Preciso de um tempinho pra me acostumar com essa nova realidade. Bom, mas pensar, ainda penso. E continuo sabendo de algumas coisas. Sei, por exemplo, que não morri. Na linguagem do meu grande poeta-filósofo Rubem Alves, só fiquei encantada. Ué, como é que ainda me lembro de Rubem Alves numa hora dessas? Pensando bem, ficar encantada não é tão ruim assim...