Mais uma fila
A fila crescia sem parar, em meio a gestos impacientes e o calor insuportável daquela cidade do litoral. Lotérica Deusa da Sorte, esse era o nome daquele espaço espremido em uma galeria decadente, onde só restara o quiosque do sorvete. Era por volta de três horas da tarde, o sol não dava trégua, enquanto aproximadamente 30 pessoas aguardavam o atendimento tão esperado para poderem sumir dali.
Uma senhora aguardava sentada em frente ao ventilador, dissera passar mal. Será? Nunca saberemos, todos ali também passavam mal. Mais atrás um homem com uma conta de luz amassada e molhada pelo suor de sua mão calejada. Segunda via, dizia ele. O infeliz do cachorro comera a original. Ao ligar para a concessionária de energia elétrica, descobrira que não enviavam outra pelo correio. Do outro lado da linha uma voz metálica informava que bastava entrar no site e imprimir uma segunda via. Como assim? E ele lá sabia mexer em computador? A insistência não adiantou, teve que pedir para o filho do patrão fazer esse favor. O moleque de 13 anos olhou pra ele como para um ET. "Você não tem internet, Severino?" Essa era boa! Se tivesse não estaria ali pedindo, muito menos passando aquele sufoco, perdendo todo o horário de almoço naquela fila que não andava. Pior que não dava nem pra olhar pro rosto das caixas, era um vidro espelhado, com espaço apenas para passar o dinheiro e as contas. Gostava de lembrar do seu tempo de molecote, onde existia menos desconfiança, os balcões eram baixos e se podia olhar nos olhos de quem atendia a gente. Mas, isso parece que foi há tanto tempo, deve ter sido em uma outra vida qualquer.
Seus pensamentos foram cortados por um suspiro longo de uma mulher gorda à sua frente, uma gota grande de suor lhe caia pelo rosto. Também tinha jeito de gente sofrida, quis puxar papo para o tempo passar mais rápido, a timidez não deixou. O pai dizia que ele tinha falta de jeito para lidar com as pessoas, podia ouvir a sua voz dizendo:
"Esse moleque não vai servir pra nada Maria. Eita menino mais desastrado, não presta pra nada. Deve ter puxado pra sua família, onde só tinha lesado."
O pai devia de ter razão, só prestara pra arrumar mulher e fazer filho. De resto vivia fazendo bico, trabalho pesado, daqueles que ninguém faz por pouco dinheiro. Aí era só chamar o Severino, esse tava na pior, aceitava qualquer negócio.
Graças a Deus a fila andara um pouco, só faltava um na sua frente. Justo agora uma das caixas saiu pra almoçar, mas tudo bem. Antes de ir tinha atendido a mulher na sua frente. Ele era o próximo, talvez ainda desse tempo de comer a marmita, mesmo que fria. Pra esquentar não dava mais.
E assim, naquele momento tão curto e tão distante que nos separam do esperado grito de "próximo", viu um rapaz alto, forte, óculos escuros, pele branca, com aquele leve bronzeado do sol, passar na sua frente e dizer que ia só pedir uma informação. Tinha que ser justo na sua vez! Mas, enfim, era só uma informação, coisa rápida. O moço encostou no caixa pra perguntar se recebia uma conta e, quando ele deu por si, já dava o dinheiro pra efetuar o pagamento. Simples assim! Ele há 45 minutos esperando naquela fila e vem uma criatura do nada pra passar na sua frente. A indignação era imensa, teve vontade de gritar, reclamar, xingar. E fez aquilo que tinha feito a vida toda, nada. O moço saiu, entrou no carro com vidros escuros e partiu cantando pneu.
Mas ele ficou lá, pagando a conta e ouvindo todo tipo de palavrões e impropérios dos demais "colegas" de fila. Foi chamado de frouxo, covarde, e muito mais. Melhor não entrar em detalhes. Saiu calado, cabeça baixa, passos rápidos. Agora não dava mais tempo de comer a marmita.