O CANARIO
Katherine Mansfield
APRECIAÇÃO
Acabo de ler o texto O Canário de Katherine Mansfield, uma escritora da Nova Zelândia e estudou na Inglaterra, por volta de 1900. Teve uma vida afetiva conturbada e, numa época em que as mulheres pouco se destacavam, ela publica “In a German Pension”, seu primeiro volume de contos. A vida não lhe foi fácil. Fica com tuberculose. Uma década depois publica o segundo volume de contos “Prelude”.
Em 1920: “Je Ne Parle Pás Français”.
Em 1921: “Bliss and Other Stories”.
Em 1922: “The Garden Party and Other Stories”.
E em 1922, já com a doença agravada, escreve “O Canário”, o último deixado acabado.
E morre aos 34 anos em 1923, em nove de janeiro, na Suíça.
Estou chocada. Sempre ouvi falar desta escritora, mas nunca me interessou, talvez não tenha eu deparado com uma tradução dos seus livros, e inglês não é a minha praia.
Penso que, talvez, eu associasse seu nome aos escritores M. Delli. Não sei precisar.
Fato é que, só agora, que tanto me interesso pela Palavra e pela escrita eu venho a conhecê-la. E sua alma vibrou com a minha.
Sou avessa a prender os pássaros, que têm asas é para voar, precisam viver em liberdade, que é o anseio de cada um de nós.
Mas o canário de Katherine é o companheiro doce que ameniza a sua solidão e o seu universo rico de escritora, em época mais adversa para a mulher, que a nossa atual. E neste escrito ela é tão atual quanto os melhores poetas conhecidos.
Estou emocionada. Uma leitura cheia de humanidade, de sensibilidade e de solidão.
Não sei quem mais eu amei neste conto: se a Katherine ou se o seu canário lindo. Ambos já morreram, mas viveram o mesmo tempo e a mesma solidão.
MLuiza Martins (13/04/2010)
O canário
Katherine Mansfield
... Você vê aquele grande prego à direita da porta da frente? Dificilmente olho para ele, mesmo agora, e até hoje não tive vontade de arrancá-lo. Gostaria de pensar que ele fosse permanecer ali, mesmo depois de mim. Às vezes imagino as pessoas no futuro a dizerem: "Deve ter havido uma gaiola pendurada ali." E isso conforta-me; sinto que ele não está inteiramente esquecido.
... Você não pode avaliar como era maravilhoso o seu canto: não .cantava como os outros canários. E isto não é apenas fantasia minha. De minha janela, eu costumava ver as pessoas pararem em frente ao portão, para ouvir melhor, ou encostarem-se na cerca perto da falsa-laranjeira, um bocado de tempo, emocionadas. Suponho que você vá achar isso um absurdo — não acharia se o tivesse ouvido cantar —, mas parecia, realmente, que ele cantava as canções completas, com começo e fim.
... Por exemplo: à tarde, quando eu terminava o serviço, mudava de blusa e trazia minha costura para a varanda, ele costumava pular de um poleiro para o outro, bater contra as grades da gaiola, como se fosse para atrair minha atenção, bebia um gole d'água, tal como o faria um cantor, e punha-se a executar uma canção tão afinada que eu tinha de largar a agulha para ouvi-lo. Não sou capaz de descrevê-lo; bem que gostaria. Era sempre igual, toda tarde, e eu sentia que compreendia cada nota emitida.
... Eu o amava. Como eu o amava! Talvez não importe muito que coisa amamos neste mundo. Mas devemos amar alguma coisa. É claro, eu tinha minha casinha e o jardim, mas, por algumas razões, não era o bastante. Flores são maravilhosas, mas não sabem demonstrar simpatia. Naquela ocasião eu amava a Estrela Dalva. Isto lhe parece uma tolice? Eu tinha o costume de ir para o jardim, depois do pôr-do-sol, e esperá-la até que brilhasse por cima do eucalipto escuro. Eu costumava murmurar: "Aí está você, minha querida." E exatamente nesse instante ela parecia brilhar só para mim. Ela parecia compreender isso... alguma coisa que é como um anseio, mas não é um anseio. Ou lamento — sim, é mais parecido com lamento. E, no entanto, lamento por quê? Eu tenho tantos motivos para ser grata!
... Mas depois que ele entrou em minha vida, esqueci a Estrela Dalva; não precisei mais dela. Mas foi estranho. Quando o chinês chegou à minha porta vendendo pássaros, ele, em sua pequena gaiola, em vez de se debater contra as grades, como aqueles pobres pintassilgos, soltou um trinado fraco e curto, e eu me vi dizendo, como havia dito para a estrela por cima do eucalipto: "Aí está você, meu querido." Desde aquele momento, ele foi meu.
... Até hoje me surpreendo, quando me lembro de como ele e eu partilhávamos nossas vidas. Na hora em que eu descia, pela manhã, e retirava a toalha que cobria sua gaiola, ele saudava-me com uma notinha sonolenta. Sentia que ele queria dizer: "Tia! Tia!" Então, pendurava a gaiola no prego do lado de fora, enquanto servia o café aos meus três rapazes, e nunca o levava de volta para dentro enquanto não tínhamos a casa só para nós dois. Depois, enquanto eu lavava a louça, era uma diversão completa. Eu abria um jornal sobre um canto da mesa e, logo depois que eu punha a gaiola sobre o jornal, ele costumava bater as asas desesperadamente, como se não soubesse o que ia acontecer. "Você é um perfeito ator", eu gostava de dizer-lhe com ar de zangada. Eu raspava o fundo da gaiola, espalhava areia em cima, renovava a água e o alpiste das latinhas, espetava um pedaço de couve e meia pimenta malagueta na grade. Tenho plena certeza de que ele compreendia e apreciava cada item dessa pequena operação. Sabe, ele era por natureza muito asseado. Nunca havia uma sujeira em seu poleiro. E era preciso ver como gostava de se banhar, para se perceber que ele tinha verdadeira paixão por limpeza. Sua banheira era colocada por último; no mesmo instante ele pulava nela. Primeiro batia uma asa, depois a outra; então, mergulhava a cabeça e umedecia as penas do peito. Gotas d'água espalhavam-se por toda a cozinha, mas ele ainda não queria parar. Eu costumava dizer-lhe: "Agora basta. Você está apenas se exibindo." E por fim ele pulava para fora e, de pé sobre uma das pernas, começava a se bicar para enxugar-se. Finalmente sacudia-se, dava uma pirueta, um gorjeio, levantava a cabeça e... Ah! como dói lembrar. Nessa hora eu estava sempre enxugando as facas e quase me convencia de que elas também cantavam quando eu as esfregava para brilharem em cima da tábua.
... Companhia! É isso, veja, isso é o que ele era. Uma companhia perfeita. Se você algum dia viveu só, compreenderá o quanto isto é precioso. É verdade que havia meus três rapazes, que chegavam para o jantar todas as tardes e algumas vezes ficavam na sala, lendo o jornal. Mas eu não podia esperar que eles se interessassem pelas pequenas coisas corriqueiras do meu dia-a-dia. Por que se interessariam? Eu nada era para eles. Na verdade, eu os ouvira certa vez na escada referindo-se a mim como "O espantalho". Não importa. Não tem importância. Eu entendo muito bem. Eles são jovens. Por que haveria eu de ficar ressentida? Mas lembro-me de me sentir grata por não estar inteiramente só, naquela noite. Eu lhe disse, depois que os rapazes tinham ido embora. Eu lhe disse: "Você sabe de que nome eles chamam a Tia?" E ele deixou cair a cabeça para um lado e olhou-me com seu olhinho brilhante até que eu não pude conter o riso. Aquilo pareceu diverti-lo.
... Você já criou pássaros? Se não, tudo isto vai talvez parecer-lhe exagerado. As pessoas têm idéia de que os pássaros são seres sem coração, pequenas criaturas frias, ao contrário de cães e gatos: Minha lavadeira costumava dizer, nas segundas-feiras, quando queria saber por que eu não criava "um bonito fox-terrier": "Ter um canário não traz conforto, senhora." Não é verdade. É um grande engano. Lembro-me de uma noite. Eu tinha tido um sonho horrível — os sonhos podem ser muito cruéis — do qual, mesmo depois de acordada, não podia livrar-me. Então, vesti minha camisola e desci à cozinha, para tomar um copo d'água. Era uma noite de inverno e chovia forte. Acho que eu estava ainda meio adormecida. Pela janela da cozinha, que não tinha veneziana, a escuridão parecia estar olhando fixamente para dentro, espionando. E de repente senti que era insuportável não ter alguém a quem pudesse dizer: "Tive um sonho tão horrível" — ou "Defenda-me da escuridão." Até mesmo cobri meu rosto, por um momento. Então veio o agradável som "Psiu! Psiu!" A gaiola estava em cima da mesa, e o pano que a cobria havia escorregado, deixando uma fenda, por onde entrava um raio de luz. "Psiu, psiu!" — disse o encantador bichinho outra vez, docemente, como para dizer "Estou aqui, Tia! Estou aqui!" Aquilo soou tão agradável e confortante para mim, que quase chorei.
... E agora ele se foi. Nunca mais terei um outro pássaro, nem qualquer outro animal de estimação. Como poderia ter? Quando o encontrei, deitado de costas, os olhos turvos, as patinhas retorcidas, quando percebi que nunca mais ouviria seu canto tão querido, alguma coisa pareceu morrer em mim. Meu coração ficou vazio, como se fosse a gaiola dele. Eu hei de superar isso. É claro. Preciso fazê-lo. Com o tempo as pessoas se recuperam de qualquer coisa. Dizem que eu sempre estou bem-disposta, e têm razão. Graças a Deus, estou.
... Contudo, sem ser mórbida e mexendo nas lembranças, devo confessar que vejo nisto alguma coisa de triste na vida. Não me refiro à tristeza que todos nós conhecemos, como a doença, a pobreza e a morte. Não, é algo diferente. É lá no fundo, bem no fundo, faz parte da gente, como a respiração. Por mais que trabalhe, por mais que me canse, basta parar para sentir que essa coisa está lá, esperando. Muitas vezes eu me pergunto se todo mundo sente do mesmo jeito. Nunca se pode saber. Mas não é extraordinário que dentro de seu canto alegre, doce, tudo o que eu ouvia era: tristeza? ah, o que é isto?
O texto acima foi extraído do livro "Felicidade e Outros Contos", Editora Revan — Rio de Janeiro, 1991, pág. 133, tradução de Julieta Cupertino.