“Chão De Meu Deus”

Fontes Ibiapina exerce uma prática textual linear. Suas histórias não ostentam nenhuma ousadia ficcional. Ele retrata um nordeste de gente simples, do interior, muitas vezes analfabeta. Inexistem marcas lingüísticas de rebeldia. O conto “Minhas Primas” é uma mostra dessa simplicidade do narrador. Não há um estilo audaz, semelhante àquele dos autores da terceira geração modernista.

Guimarães Rosa inovou o linguajar do caboclo sertanejo, Ibiapina permaneceu fiel ao estilo tradicional da narrativa. Grande Sertão: Veredas, obra memorial, marco na literatura brasileira, parece não ter influenciado nosso contista Ibiapina, neste, e em outros contos do livro “Chão de Meu Deus”. Nele, as personagens parecem estar conformadas com seus modos de vida. Não há também exploração psicológica da subjetividade delas.

Leiamos o primeiro parágrafo do conto, no qual o narrador começa a lembrar-se de certa época em que paquerava uma de suas primas e flertava, eventualmente, com outras mulheres do lugar:

(Ibiapina, 1965): Me lembro como se fosse ontem ! A tarde foi nublada. Mas até não parecia que fosse chover. Homens passavam das roças para os ranchos. Os meninos magros e barrigudos dos agregados pescavam à beira da lagoa. Vez por outra, um corrozinho saracoteava irremediavelmente na barbela dum anzol.

A prima dorinha, apesar de não ser a mais bonita, era a sua preferida. Um samba ou uma festa sem ela para ele, narrador, não valia quase nada. Ela sempre prometia que não dançaria com ninguém até que ele voltasse. Mas Dorinha tinha uma fama danada de galinha. Uma das primas e outras pessoas, davam notícias de que ela mantinha, por baixo, cinco namorados.

Mariínha, também sua prima, sempre dizia ter descoberto outros namorados da irmã, tentando, com certeza, armar uma intriga dele com Dorinha, no interesse de tê-lo por namorado. Ela dizia que a irmã namorava com Fulano, Beltrano, Sicrano, e sabe-se Deus mais com quem. E o narrador admite que era de seu saber a semvergonhice da namorada, mas, devido a uma atração que não podia evitar, estava sempre enrabichado com ela. Nem notava as segundas e terceiras intenções de Mariínha.

O conto vai se desdobrando no mesmo ritmo narrativo, sem inovações ou novidades lingüísticas. A simplicidade do falar e da vida rotineira dessas pessoas simples, sintonizadas apenas no mero sobreviver, é a tônica dos contos de Ibiapina.

Mariínha continuava tentando acabar o namoro deles, e confidenciou para ele que Dorinha não havia dançado num certo baile, ao qual ele não comparecera, mas tinha tirado muitas casquinhas com Antônio Matias, tomando até vinho que ele lhe ofereceu.

(Ibiapina, 1965): Desta vez me zanguei com aquela confidente interessada. Antônio Matias era um pé rapado. Não me era possível acreditar que Dorinha, ou qualquer outra de minhas primas, lhe desse confiança. Ele mesmo era o primeiro a reconhecer seu lugar. Tanto que, apesar da lamparina de forró, não arrastava os pés em nossas brincadeiras.

A história de “Minhas Primas” se desenvolve a partir desse eixo narrativo: as outras primas dele, narrador, tentando afastá-lo de Dorinha, porque ela era uma namorada muito afoita em fazer parcerias com outros em sua ausência. Negrinha, a empregada e Lucíola, outra prima, serviam muito no sentido de levar os recados escritos nos bilhetes dele para a danada da Dorinha.

Nesse meio tempo Mariínha arranjou um namorado analfabeto. Ele, o narrador, foi quem escreveu a carta pedindo ao pai dela licença para o namoro. Talvez ele tenha cismado de alguma coisa com ela, o certo é que nem fazia um ano do pedido de casamento, ele, o novo de Mariínha, sem mais senões, se casou com outra.

Ele até se engraçou de verdade num baile, com uma mulher chamada Amélia, comprometida com Odilon Freitas. Enquanto o namorado dela estava no maior porre, curtindo uma sonolência, aos roncos na mesa, ela e ele se deram a maior das esfregações no salão diante de todos. Foi uma balbúrdia geral, todos comentavam à boca pequena, que era uma traição da Amélia, que ela não podia fazer uma desfeita daquelas com o Odilon Freitas, e coisa e tal.

A própria mãe do narrador tratou de desencorajá-lo com muitas e reiteradas reprimendas. E ele curtiu as ausências de Amélia, quem sabe até às lágrimas. E ficou sabendo que um bando de fuxiqueiras faziam as maiores intrigas dele para com ela, de modo que ficou mesmo impossível outro contato com a mulher que, até então, mais lhe cutucou a coceirinha em direção ao casamento. Com Amélia ele ia até para o altar. Mas como ? Nunca mais a viu.

Depois que o Zé Beê contou a ele tudo: Dorinha não passava de uma vira-folhas. Bastava que ele desse as costas para se enrabixar com o primeiro que encontrasse. E no último parágrafo do conto o narrador desabafa:

(Ibiapina, 1965): Só assim eu ficaria sabendo de tudo. Só assim eu ficaria certíssimo que não eram simples fuxicos nem despeito da outra prima. Aprendi uma bela lição na vida. Mas também perdi a esperança de realizar um dos meus melhores sonhos. Mariínha era apenas uma prima amiga. Arranjou outro noivo e dentro em pouco se casou.

Dessa forma termina a história simples de algumas pessoas do interior piauiense, contada por Fontes Ibiapina. A narração se estabelece num contexto literário de normalidade da linguagem, sem inovações. Ibiapina não é transgressor nem intrigante, escreve seu texto dentro do limite do previsível, da linearidade.

As personagens estão inseridas num contexto social interiorano, que determina as limitações de seus próprios quereres, de uma linguagem reduzida, que não problematiza nada, nem sugere conflitos outros, senão as tatibitates quizilas dos namoros, das festas, dos forrós, das sovacadas e arrasta-pés.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 12/04/2010
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