PODE SER SORTE
As coisas quando estão muito difíceis, fertilizam a imaginação e costumam facilitar o surgimento de manifestações intuitivas na gente. Às vezes, instintivas, aqueles gestos que atropelam a racionalidade e nos fazem apelar para o mais cômodo e rápido a fim de salvar a pele. Nesse último caso é o que popularmente conhecemos como desespero. Por exemplo, se você tiver um dinheirinho contado para pagar a conta de luz ou de água, nunca o arrisque num jogo de loteria naquela confiança exasperada de que vai dar certo. Pode até dar. Mas é uma chance de acertar em mais de onze milhões. Enquanto a chance de a concessionária lhe cortar o fornecimento é de cem por cento na falta do pagamento, entendeu?
A mulher estava desempregada, tinha até curso superior e alguma experiência, mas estava desempregada. Hoje em dia não bastam títulos, nem experiência. Em muitos casos, tem que ter uma indicação das boas, pouca idade e outras qualificações acessórias. Senão terá que contar com a sorte. Pois é de sorte que eu vou falar. Pelo menos da crença nela na hora em que todos os seus predicados deixam de funcionar a seu favor para as coisas darem certo na vida.
O marido já estava aposentado, é verdade, mas a renda era pouca. Pagavam aluguel e o proprietário pressionando o tempo todo para aumentar o valor da locação. As despesas gerais só aumentando, os cortes de gastos aumentando na mesma proporção e o dinheiro cada vez mais escasso. Tinham sim, um carrinho velho, quase quinze anos de uso, mas ele era uma espécie de ajudante de ganhos. Nenhum luxo, portanto, não podia ser sacrificado para fazer caixa. Levava a mulher para lá e para cá quando ela arranjava algum serviço avulso, daqueles de “pegar ou largar” ou ter que disputa-lo com muita gente. Nessas horas é que aquele ditado funciona: “ quem chega primeiro à fonte bebe água limpa”. O carro era o condutor para os caminhos da fonte. Mil cilindradas, mas ligeirinho.
Naquela noite havia um desses serviços para ser feito em casa, porém com o compromisso de entregá-lo no outro dia cedinho. Dinheiro certo, bom pagador o cara que encomendou. Ficara ali no computador até altas horas, o marido já dormindo com a tv ligada e subitamente ela chega ao quarto esbaforida, acordando-o com uma barulhada e deitando-se enfiada totalmente sobre o edredom. Disse que havia uma barata voadora lá na sala do computador. Daí a pouco, volta ela a acordar o marido.
– O bicho veio para o quarto, mata ele!
– Desligue a televisão, esses bichos noturnos vão para onde tem alguma luz.
Apagou mas não se contentou por mais do que quinze minutos. O marido já estava ficando impaciente. Resolveu levantar-se e despachar o bicho, senão ia ser a noite inteira com sono interrompido pelos faniquitos da mulher. Quando acendeu a luz era uma esperança. É isso mesmo, aquele inseto que dizem trazer a sorte quando estão se aproximando da gente. Ela foi lá no cantinho de trabalho da mulher, depois a acompanhou para o quarto. Agora pode ser tarde demais, o marido pegou a esperança e a defenestrou, literalmente. Tomara que a sorte não tenha ido junto.