SAUDADES DE UM HOMEM...

Hoje eu quero falar de saudade. Mas não é de uma saudade qualquer. Quero falar da saudade que sinto de um homem. O pior é que eu só passei a sentir saudade depois que ele partiu. Antes, podem acreditar, eu não sentia a necessidade de sentir saudade, mesmo que ele passasse muito tempo sem voltar para o seu lugar.

Verdade. Isso não significa dizer que eu não sentisse nenhum sentimento por ele. Pelo contrário. Eu o admirava. Sempre o tive como espelho e, via nele, o modelo de um homem que eu queria ser quando crescesse. Era honesto, só pregava o bem e nunca o vi participar de nenhuma falcatrua. Detestava, inclusive, tudo que não fosse um ganho merecido.

A sua trajetória de vida sempre foi pautada pela retidão dos seus atos. Desde pequeno, a responsabilidade foi-lhe dada. Dela, nunca se esquivou. Assim, muito cedo, passou a ganhar o próprio sustento, ora como ajudante, depois como o próprio dono de suas ações.

Não era de falar muito. Porém, quando falava, sempre tinha uma história para contar. Parecia que entendia de parábolas (tiradas às devidas proporções, se parecia com alguém que amamos muito), pois, para cada exemplo dado, a reflexão tinha que vir junto. O interessante era que lia muito mal. Era semi-analfabeto. No entanto, isso nunca o impediu de ler, principalmente, sobre as coisas comuns.

Quando tinha tempo sobrando, ele dedicava aos afazeres domésticos, ao descanso, à manutenção do seu caminhão e, sobretudo, ao que mais gostava: o futebol. Era santista roxo. Fico imaginando a sua satisfação, se não tivesse partido, vendo e ouvindo esse time de craques que o Santos Futebol Clube tem nas mãos, agora em 2010.

Lembro-me de uma passagem marcante, acontecida entre ele e eu. Há muito tempo, no início da minha adolescência, eu era viciado em cigarro industrial, mas não tinha dinheiro, na época, para comprar. O jeito era pedir para os colegas, a “segunda” (termo usado, na minha época de adolescente, para designar a metade do cigarro que alguém da turma tivesse fumando – e tinha que ser rápido para pedir a “segunda” do cigarro, pois quase todos da turma não tinham dinheiro para comprar também e, se não gritasse alto a “famosa” palavra, com certeza, outro gritaria). Pois bem, numa tarde de uma semana qualquer, eu estava sentado com uma turma de companheiros e um deles (o mais abastado) tirou o cigarro do bolso (vale salientar que todos nós fumávamos escondido dos pais da gente), e eu, rápido como só o vício permite, gritei: “a segunda é minha!”

Esqueci-me, no entanto, que ele, o homem de quem, hoje, eu sinto saudade, estava a pouco mais de dez metros de mim, carregando o caminhão, num armazém de sal. De lá, ele olhou quando eu peguei “a piúba” (termo também usado por nós para definir quando o cigarro estava da metade para baixo, já perto do filtro) e, imediatamente, chamou pelo meu nome:

- Toinho (era o meu apelido), venha cá!

Você imagina o susto! Eu soltei a “piúba” no chão, ao lado de onde estava, e ela desapareceu, por encanto. É claro que outro garoto, sedento de tragar aquele “cotoco”, apanhou-o rapidamente e já o colocou na boca, e deu uma longa tragada. A mim, só me restou ir ao encontro dele. Fui. O coração batia aceleradamente. Sabia, de antemão, que ia, no mínimo, levar uma bronca muito grande, na frente dos colegas e, quando chegasse em casa, provavelmente, iria ficar de castigo. Quando eu me aproximei, de cabeça baixa, tremendo de medo, ele olhou-me e falou desta maneira:

- Meu filho, você sabe que é errado botar isso na boca. Esse vício não presta. Além do mais, não se deve pegar nada que já foi colocado na boca de outra pessoa e colocar na sua própria. É “seboso” (é claro que ele se referia a anti-higiênico, porém era mais prático usar as expressões corriqueiras. Ainda é). E eu concordo.

Eu, de cabeça baixa, não disse nada. Apenas a balancei, concordando. Ele, mesmo a contragosto, tirou do bolso uma nota de duzentos cruzeiros e me deu.

- Pegue, disse ele. Se quiser acabar com a sua saúde, acabe. Mas não peça pedaço de vício a ninguém. Fume quando puder comprar, ou quando eu der dinheiro para isso. E lembre-se: quando esse vício se tornar a causa principal de sua existência, é um bom sinal para deixá-lo.

Infelizmente, ele se foi antes de me ver deixar o vício. Ficou a lição – eu guardei suas palavras: assim que eu percebi que o vício estava me dominando, tratei de pôr em prática a frase dita há muitos anos.

Hoje eu senti saudade de você, meu pai.

 


Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 11/04/2010
Reeditado em 07/12/2011
Código do texto: T2190069
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