É uma greve legal

        Já disse mil vezes que não troco uma cerveja gelada por nada neste mundo. 
        Mantenho, no meu improvisado bar, vinhos e uísques da melhor qualidade. Mas deles quase nunca me aproximo. Guardo-os para oferecer, com um prazer imenso, aos amigos e amigas que me visitam, e são, declaradamente, chegados a um caprichado drinque.
        Noite dessas, para minha alegria, vi alguns companheiros, em meio a uma saudável algazarra, consumirem mais de um litro de uísque, reduzindo o meu acanhado estoque de Johnnie Walker.
        Bebo cerveja desde que nasci.
        Pouco me importa que, ao ingeri-la, corro o risco de modificar minha configuração física, com o rápido crescimento de minha barriguinha.
        De repente, atrás dela esconde-se aquela falsa impressão, tão ao gosto dos antigos, de que barriga grande é sinal de prosperidade. Quem dera!
        Cheguei, em tempo hábil, à conclusão de que, com ou sem barriga, não me tornaria nem mais nem menos atraente, fascinante, irresistível... Por que, então, essa de limitar minha cervejinha em favor de uma estética corporal  irretocável?
       
        Sempre que escrevo sobre minha bebida predileta - e já fiz isso dezenas de vezes - busco, no saudoso Antonio Houaiss, informações preciosas sobre a "loirinha", a fim de tornar mais interessante e consistente os meus rabiscos.
        Houaiss deixou-nos o seu formidável Dicionário e também um pequeno livro intitulado A Cerveja e seus Mistérios
         Está nesse livrinho, por exemplo, que "em sentido geral, a cerveja é provavelmente a mais antiga das bebidas alcoólicas". Os babilônios a teriam conhecido. 
        No Brasil, ela chegou com D. João VI, que também adorava u´a cervejinha.
        Sobre como e por que beber cerveja, alerta Houaiss: "Bebe-se pelo prazer de viver, sobretudo de conviver..."
        Salientando ainda o nobre acadêmico que são poucos os bebedores de cerveja solitários. Concordo.

        Aguardando para ser recebido num consultório por um desses médicos que não usa(!) relógio, atrevi-me a ler uma revista
Caras, posta na mesinha de centro.
        Acho que Caras, VIPs, Ti-ti-ti e outras do mesmo gênero ali são colocadas para que  o cliente não sofra tanto com a longa espera do seu médico.
Será que estou enganado?
        Numa das páginas da citada revista, encontrei - e até me espantei - um poema de William Blake, poeta inglês, nascido em Londres em 1757. Surrupiei-o e aproveito para, divulgando-o aqui, alegrar os amantes da boa cerveja.

               O pequeno vagabundo

        Oh mãe querida, mãe querida, a Igreja é fria,
        Mas doce e quente é boa  é a Cervejaria;
        Onde há bom trato ao certo sei dizer esperto,
        E esse trato no Céu jamais irá dar certo.

        Mas se dessem cerveja a nós lá na Igreja,
        E uma doce fogueira, às almas benfazeja,
        Cantar e orar se iria quanto é longo o dia,
        E da Igreja ninguém jamais se afastaria.

        O Padre então rezar, beber, cantar pudera,
        Quais pássaros seríamos na primavera;
        E teria a ilusão, Igreja em prontidão,
        Prole mais forte, sem jejum e sem bastão.

        E, como um pai radiante ao ver os filhos seus
        Contentes e felizes tal como Ele, Deus, 
        Concedendo quartel ao Diabo, ou ao tonel,
        Dar-lhe-ia um beijo, e mais bebida, e mais burel.

        Os cronistas, não é novidade, vivem e sobrevivem de grandes e pequenos fatos que o dia-a-dia lhes oferece. Cabe-lhes registrá-los. Deixando aos leitores a liberdade plena de dizerem se o que eles escreveram valeu a pena ou não. 
        Por isso, anotem esse.
        Aqui na Bahia, faz muitos anos, bebeu-se uma das melhores cervejas do mundo, a Carlsberg. 
        Os dinamarqueses, aproveitando-se da excelente água de uma cidade da grande Salvador, permitiram que aqui se instalasse um fábrica dessa saborosa cerveja. 
        Fiz memoráveis farras movido a Carlsberg. Mas a felicidade durou pouco. Logo a fábrica fechou.
        Leio nos jornais que os empregados da fábrica-mãe  dessa gostosíssima cerveja, na Dinamarca, entraram em greve. 
        Eles reivindicam a revogação imediata da determinação patronal que os impede de beber uma cervejinha na hora do trabalho. 
        Tal proibição nunca houvera prevalecido nessa famosa empresa de bebida, a quarta do planeta. 
        Maldita proibição!
        Não podia ficar calado. Mestre (sempre com moderação) na "prática bibitória da cerveja",  solidarizo-me com os empregados da Carlsberg da Dinamarca, entendo ser absolutamente justa e legal a sua greve.
       
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 10/04/2010
Reeditado em 10/04/2010
Código do texto: T2188924