Silas em São Dimas de Dentro (parte I)

Silas é um bom homem. Funcionário público, é correto, trata todos bem no trabalho, apesar de não manter grandes intimidades ou amizades. Mora sozinho, numa quitinete que alugou mobiliada.

Às terças-feiras vai à sessão das dez no velho cinema perto da repartição. Seu apartamento é próximo dali, também. Apesar de ter um pouco de medo de assalto, vai à sessão porque gosta dos filmes que passam neste horário. A sala de exibição está praticamente vazia hoje. Quer dizer, sempre está vazia! Normalmente vão as mesmas pessoas, que Silas já conhece de nome. “Seu” Malaquias é ferroviário aposentado, cinéfilo inveterado e afirma já ter visto quatro mil filmes, o que Silas duvida muito. Mas sempre faz cara de impressionado toda vez que ouve sobre a grande lista. Vai lá, também, o casal Ignácio e Maria do Carmo. Ambos são alcoólatras, ele com algumas passagens por hospitais psiquiátricos. São, em geral, simpáticos e conversadores, mas brigam agressivamente, de vez em quando. Para completar o time dos assíduos temos Dona Valquíria, professora de matemática, solteirona, militante de organização maoísta nos anos 70, oito anos exilada no México. Aquela era, praticamente, a sua única família de Silas, pessoas com quem trocava apenas algumas palavras e encontrava em meio àquelas poltronas furadas.

Além do cinema, saía de casa apenas nos passeios durante as tardes de domingo, onde fazia um lanche na mesma confeitaria e, depois, se sentava na praça logo ali em frente, onde lia o jornal. Entre as notícias, observava as crianças e os idosos, as empregadas e os evangélicos que pregavam, o cego que tocava um violão com cordas arrebentadas e os pombos, claro, sempre os pombos.

Vamos ver, então, Silas, o que noticia o jornal…. “assalto na farmácia, atriz da novela fez escova inteligente, político pode ser cassado”. Enfim, parece tudo no mesmo lugar, pensou o funcionário público. Quando já ia dobrar as folhas, viu um informe publicitário daquela rede de livrarias famosa: “concurso literário: seja você, também, um autor”. Na hora vieram à mente de Silas todos os sonhos da juventude de ser escritor. Todos os contos, o romance em manuscrito, tudo o que sonhou ser. Mas, quem sabe agora? Será esta a oportunidade? O vencedor de melhor Romance ganha o lançamento da obra com edição de luxo! Será que concorro?

Mas…. Silas não havia olhado um detalhe, em letras menores. O tema do concurso era “minhas memórias”. Putz! Que droga! Silas simplesmente não tinha nenhuma grande memória digna de nota. Sua infância foi dentro de um apartamento, brincando com seus playmobills. Sua adolescência, igualmente monótona, onde a maior parte do tempo estava lendo quadrinhos e indo na matinê do velho cinema. Em alguns segundos viu sua chance perdida.

Foi, então, para casa. Pensou na sua fama como escritor. Pensou em toda outra vida que poderia ter. Seria a sua chance de fazer tudo diferente. A televisão estava ligada, mas ele pouco prestava atenção no que estava passando. Mais ou menos via que havia uma banda de fanfarra, tocando numa típica pracinha do interior mineiro. Não sabia exatamente do que se tratava. Algumas coisas foram fazendo sentido na cabeça de Silas, mas ele ainda não sabia o que era. O que essas imagens estão relacionadas com o que estou pensando? Viajou mais um pouco naquela música e naquelas imagens… Peraí! Já sei! Mas, será? Uma insight lhe veio à mente. O que será que aconteceria se eu inventasse minhas memórias? Ou melhor, se eu vivesse o passado que nunca tinha vivido!

No dia seguinte pensava compulsivamente naquela idéia um tanto desonesta, mas fascinante para a sua cabeça. No trabalho, enquanto organizava uma planilha, Silas entrava, algumas vezes, no Google e pesquisava cidades mineiras. Procurava, pelas fotos, a imagem que havia presenciado na televisão. Coretos, igrejas, bandas, estátuas, mercerarias… cada imagem era o ponto de aproximação que imaginava. Minas Gerais era o lugar para suas memórias. Uma cidadezinha lá no interior deste formoso estado, num lugarejo que foi feito para se passar uma bela infância e adolescência.

A idéia inicial de Silas era usar aquelas imagens que ele havia salvo no pen drive para a inspiração de sua bela narrativa. Mas nada saía de sua mente criativa. Foi quando tomou a radical decisão: passaria o próximo fim de semana em São Dimas de Dentro, cidade que mais chegou perto das imagens seus sonhos.

Ônibus, estrada….Silas é acordado pelo cobrador. Moço, moço! São Dimas já chegou!

(continua…)

Gabriel de Barcelos

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