T E L Ú R I C O*
Amanheci, hoje, pelo rádio, ouvindo o Belchior. Este é um cantor / compositor dos meus favoritos. Tenho-lhe algumas das principais canções e eu o acho o poeta mais autêntico do cancioneiro cearense, oxalá do País. Também, aqui, da terrinha de Iracema, gosto do Ednardo, aquele de o “Pavão misterioso”. O cartaz maior é do Fagner, mas os dois primeiros batem melhor com as minhas exigências auditivas.
Pois é..., amanheci telúrico, a ouvir gente que fala de sentimentos ensopados de cheiro do torrão natal. Todavia, é como diz no ‘slogan’ a nossa Rádio Universitária – “o regional na perspectiva do universal”. O homem é sempre um bicho universal, por mais telúrico, minúsculo e preso à engrenagem da terra que ele seja. E a música – bem mais forte que o esperanto, o chinês, o inglês, o espanhol e os demais idiomas do nosso sistema interplanetário –, ela vem a ser a linguagem internacionalista por excelência. Aprende-se o “socialismo científico”, antes de tudo, cutucando-se as nossas ouças com o cotonete democrático de uma boa mãozinha de algo musical.
Qualquer texto musical de Bach, Mendelssohn, Beethoven, Tchaikovsky, Schubert, Chopin, Mozart, qualquer partitura de qualquer um desses aí, se tu a ouvires com devoção, oh meu, na certa a justa e oportuna audição vai-te elevar às raias do infinito. Eu ficava uma bala de emoção, quando, nos tempos da ditadura, ouvia a letra de “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc. Era uma coisa que até me fazia chorar. E sem muita explicação, só em pensar no “irmão do Henfil” e no Chaplin, aquele “bêbado com chapéu coco” e o andar capenga.
Ou, então, também, quase da mesma forma me emocionava, ao escutar “Pra não dizer que não falei de flores”, do Vandré, ou ainda “Calabouço”, de Sérgio Ricardo, aquele camarada revel que quebrou o seu pinho, num festival da canção. Na audição desta última, eu visualizava as passeatas monstruosas, no Rio, levando o secundarista Édson Luís, para sepultar, e, em São Paulo, o povaréu da USP e a população inteira tangendo, pelas avenidas, os féretros do operário Manuel Fiel, do estudante Alexandre Vanucci Leme, morto após 24 horas de torturas nas dependências do DOI-CODI, em 1973, e do jornalista Vladimir Herzog, também morto sob tortura, nas garras do famigerado torturador Sérgio Paranhos Fleury.
Telúrico, sim, eu acordei, hoje. Queria ouvir mais, muitas belas páginas musicais que lembram o cheiro, o suor e o sal das terras do Brasil, do Nordeste, em particular: “Luar do sertão”, “Assum preto”, “Asa-branca” e “Triste partida”, esta do genial Patativa do Assaré. Ah, são tantas músicas que trazem lembranças do chão natal! Músicas também do Leste, do Norte e do Sul do País. “Cidade maravilhosa”..., ai, que gostosura. No Sul, por exemplo, as pérolas do Teixeirinha... “Aquarela do Brasil”, esta me bota roxo de nacionalidade.
Não curto tanto a música dita “sertaneja”, com exceções, é claro. “No Rancho Fundo”, de Seu Ari Barroso, seja na voz de quem, é antológica. Essas televisivas que estão aí, aff, na imensa maioria, elas são um porre execrável. Contudo, certa feita, quando adentrava a Ponte da Amizade, eu ouvi pelo radinho do ônibus uma guarânia, em espanhol, que me eriçou os pelos como se estes fossem facas de ponta.
Por outro lado, amei a chula gaúcha, que vi tocada e muito bem dançada, por rapazes e moças, estas lindamente bonitas, no tablado de “La carretera”, em Porto Alegre. Vejam vocês como não sou tão radical, em se tratando de gosto pela música. Até guarânia... E “Guarânia da lua nova” – sabe-se lá de quem – é um espetáculo de bola. Faz gol de placa nas orelhas de um.
Só que hoje, meus amigos, eu lhes peço as devidas desculpas. Eu amanheci telúrico, cheio de ufanismo pelas coisas simples, naturais, bucólicas e que me rememorem as nossas primícias campesinas, sem os salamaleques citadinos e convencionais.
Ai que bom seria, hoje, ficar sob o teto de uma casinha de sapé, ao sopé de um outeiro, nada de escarpas de morro, que os desabamentos do terreno são impiedosos. Por isso, nem me lembra o título, a música do Belchior, já cedinho, me fez um bem danado. Experimentem uma boa talagada de telurismo, também, minhas caras amigas e amigos.
Fort., 09/04/2010.
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(*) Letras e cantores / compositores citados, na crônica, não fazem parte necessariamente da rotina das minhas preferências musicais. Apresentei só uma pequena amostra de músicas que têm “cheiro de terra”, como aquele cheirinho bom que sentimos, quando chuvisca, sob um sol de verão. Em suma, apenas músicas que evocam o sentimento da cor local, da ambiência e do elemento telúrico, por vezes com as conotações regionais e/ou místico-religiosas. Aqui, citaria “Cuitelinho”, lindíssima, música recolhida ao folclore do Mato Grosso, por Paulo Vanzolini, e “Romaria”, de Renato Teixeira, no Sudeste. Telurismo à parte, na verdade meu gosto musical parou ali na Bossa Nova, a meu ver o único grande movimento musical de valor imensurável, embora, segundo alguns, com inspiração no jazz norte-americano.