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DOMINGUEIRA

                       - Ação Literária Entre Amigos-
                                                  
Tania Orsi Vargas







Já vai pelas cinco da tarde quando a Domingueira começa a entrar num momento de espairecimentos, os caminhares perdendo o viço, pernas que se moveram pelo salão em tricotadas linhas de coreagrafias nativas, agora pisam com uma certa leveza ,  homens e mulheres quase transfigurados após esses volteios e arrebatamentos que a dança e a música campeira leva bem ao fundo de suas almas, nas vaneras, rancheiras e polcas, no bugio um tanto desengonçado,  mas nascido aqui nos campos de cima da serra, nas milongas e chamamés de contrabando e a maioria trazendo a mestiçagem com ritmos afros, arte e  música como democrática expressão de todas as origens e povos.   Um encontro prazeroso entre as melodias e as profundezas das lembranças, luz nas trevas dos pagos de dentro, repontando as boiadas adormecidas mas bem vivas destes legados.  As prendas de todas as idades e aparências têm aquela alegria disposta de quem se entrega a uma especialíssima atividade. Não se vê cara feia nem beiço virado, todo mundo está no empenho de ser feliz e dançar como se esta fosse a única e última coisa a fazer num domingo à tarde, dia que nos tempos que correm já não tem para a maioria das pessoas a condição de proporcionar às gentes a liberdade do lazer e da alegria. Entra-se naquele salão de pessoas comuns, o salão de festas do CTG, por um ingresso de valor mínimo, e também ao entrar, transpõe-se uma espécie de umbral a partir do qual estaremos vivendo ao mesmo tempo o passado distante e o presente que só se revela pelo calendário e alguns detalhes como as calças jeans de algumas mulheres, raros celulares ou a presença quase acintosa de um aparelho de ar condicionado. Aquelas tábuas do assoalho estão há décadas ali amparando os bailarinos  nos arroubos das danças dos fandangos.   Paira no semblante de todos uma   suavidade que   não   vemos  mais em locais  públicos,  nas ruas,   nos parques. 
Alguns homens quase idosos,  em postura muito firme e ereta, conduzem a parceira de forma elegante.  Ali adiante, uma jovem vestida de prenda, acolá brilha o sorriso da quarentona  que arrumou namorado.  Um casal exibe graça e rara sintonia de pés que há muito se cruzam nas lides e nos folguedos desses rodopios.  Raros homens pilchados pontuam a paisagem.  Um rapaz muito pequeno e magro exibe seus dotes de bailarino com uma jovem loura e robusta que gira o seu largo vestido  com competência compenetrada.  E  nesta  diversidade, descobre-se a unidade, pelo fio invisível que borda a todos nesta mesma teia como crias da mesma estância.
         Os sul-riograndenses ,  filhos tardios  de um Brasil já em andamento, um tanto relegados à própria sorte, se forjaram em  vaivéns e lutas para a consolidação de fronteiras, surgindo  com  os  índios gaudérios à caça de cavalos que se espalhavam pelo pampa. São estes homens rudes, cavaleiros exímios que vão povoar o imaginário destes pagos e ser cultuados como os legítimos representantes do Rio Grande.  O mito gaúcho continua nos unindo num mesmo espírito, razão que justifica a busca desta tradição. 
          Seis horas,  e a acordeona    segue  a cantar chorosas  milongas.  Na pista restam poucos pares.  Há espaço, então, para
 ousadias nos volteios  e passos. Vigorosas pinceladas de tintas fluidas movem-se sobre esta tela viva diante de meus olhos.   Os negros cabelos da moça de vestido floreado constrastam com a sua tez tão clara, pálida, e ao levá-la com cuidado, o seu parceiro parece carregar nos braços uma terna borboleta prestes a  alçar 
um vôo leve, apenas estremecendo quase imperceptivelmente as asas de seus braços longos e perdidos na fortaleza daquele que a conduz. Lembranças estranhas me vem à mente. Aquarela distante numa cena de  filme: Franco, guerra civil na Espanha, uma atriz mambembe nua e enrolada na bandeira polonesa  para  suprema humilhação de  prisioneiros   desta nacionalidade, um tiro que a abate em pleno palco, lúgubre diversão do arbítrio e prepotência. Ela tem cabelos muito escuros como a  "dançarina quase asas" que de tão leve, agora  parece ir se diluindo nas cores do seu vestido.  Teria sido esta terrível cena evocada pela proximidade das nossas raízes espanholas, uns negros cabelos,  e o arrastado do ritmo dos nossos vizinhos do Prata?    Magia,  pura  magia...  um "bandonión" de contrabando na minha mente agoniza Piazzola.   A tarde se vai em milongas e tudo é somente um quadro surreal que vou compondo.   O Pampa me vem assim nesta Domingueira, neste meu presente, aqui bem longe da sua geografia, (estamos no Vale do Rio Paranhana), neste salão de gente humilde mas  aonde o mito  sobrevive na realidade das maneiras, nos olhares... me vem como nunca povoar  este encantamento num  final de tarde.  E  bastou somente transpor uma simples porta, logo ali, tão perto...  Enquanto a acordeona se bandeia para um *chamamé de passos entrecortados,  vou ficando naquela brecha de tempo: porteiras abertas e campo sem fim, e se consolidam meus mais intensos e exacerbados brios de mulher fortaleza:   em mim vibram avós, bisavós, Jacobinas, Anas e Angélicas, Anitas guerreiras,   sestrosas prendas no amor  idealizado pela literatura ou parceiras dos seus homens acompanhando  a marcha das revoluções.  E sou também aquela menina  que se apaixonou pela estátua do gaúcho Laçador.  Ele era mesmo um deus lá no seu pedestal, forte e belo diante do meu deslumbramento...

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tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 08/04/2010
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