Ganhou na loteria

Com espírito de Eça de Queirós ele disse que das suas memórias guardava a vez em que ganhou na loteria com quinze míseros pontos sendo necessários dezesseis pontos exatos para a verdadeira grande mordida. Enganado pelo enlevo do sonho e da necessidade por longos três dias. Doutor Eliseu Cunha, grande gozador, fez um tratado sobre a banca ao iludido ganhador. A banca tem ojeriza a ganhadores. Por isso premia o menor número possível de criaturas ao terreno da felicidade. Utilizava a palavra manancial quando queria dizer algo mais: contra um manancial de outras taciturnas na condição de perdedoras. Taciturnas de infelicidade besta. A frustração do jogo, como repetiria é o pequeno inferno diante da utilidade. Falava com ele mantendo sempre o tom alegre, bonachão, inesquecível, respeitoso pelo que havia sido. No fundo lamentava: pobre alma entregue a jogatina. Exemplar professor cansado da lida. Beber não bebia, mas jogava até as recordações da mulher. Jogava o teto, a condigna carreira de mestre e os tostões que não tinha. Esse o fim da linha daquele químico exímio das aulas noturnas do Liceu. Estranhamento era o seu único desatino: o jogo.

Podia ser visto pensativo apostando para enfiar nos bolsos o prêmio máximo. Sonhava triunfar financeiramente para que a bolha da alegria estourasse nos lábios do desejo real. Ser rico é difícil chegou a dizer no máximo da ironia. Queria ficar longe das crianças infernais da escola. Estava desencantado com certa didática sindicalista que chamava de “legado da contemplação fria”. Um legado com Mario Pederneiras como diretor vitalício do Liceu, mas democrata, seletivo. Transigente com o excesso de carga horária. Graças a ele havia se tornado um caco. Uma pobre vida desabada.

Sonhou por três noites o mesmo sonho de número definido pela numerologia. Ao passo que acordou suando frio com a idéia de ter voltado para dentro de uma sala de aula. Estava aposentado e sentia que era aposentadoria de profissão que nunca teve perfeitamente na alma. Na verdade desejava ser mecânico desde os tempos de menino. Para sujar as mãos em qualquer gaxeta e se meter com questões hidráulicas.

Observem. Lá está ele... Perto da Rua do Parque imóvel como um cisne e pensativo. Fotógrafo de números alheatórios. Tipo viciado em jogo que passou largo tempo imerso no sonho da condição de vencedor até conferir o cartão e descobrir que estava pobre novamente. Apostamos com o Doutor Eliseu que um dia ele ainda haveria de... Botar no bolso o prêmio máximo.