"Circo de Rodeio Asa Branca apresentaaaa: aaa ressureição de Cristooo!"

"Circo de Rodeio Asa Branca apresentaaaa: aaa ressureição de Cristooo!"

Lá pelas 14:00 horas do sábado, a camionete de propaganda do circo de rodeio começou a anunciar o espetáculo que seria apresentado à noite para o distinto público da pequena cidade de Turvânia/GO, a saber, a miraculosa e espetacular ressureição de Cristo!

E o carro ia bem devagar pela rua, executando num toca-discos do banco traseiro um tema de suspense, com muita trombeta e andantes, já dando o toque de suspense e mistério exigido, enquanto o locutor anunciava num tom animado e solene: "G-r-r-r-r-aan cir-r-r-co de R-r-rodeios - Asa Branca apresentaaaa: o sen-sa-cio-nal espetáculo teatral denominado "Aaaaa r-r-ressurrreição de Cr-r-ristooooo! Um show de interpretação, suspense e mágicaaaa! Não per-r-rcam. Ooos ingr-ressos a preços populares já estão à venda na bilheteria do Cir-r-rcoo. É hoje. Às 20:00 horas. Um espetáculo vindo direto de São Paulo, que vai encantar-r-r tooooda a platéia, com a interpretação magistral dos atores, o suspense e, a fantástica r-r-r-representação da crucificação, o enterro verdadeiro numa cova de sete palmos e, a r-ressur-r-r-r-reição de Cristo! Vá e leve toda a sua família para ver-r-r esta apresentação i-nes-que-cí-veell!. só hoje - ingr-ressos a preços populares já à vendaaaa!"

Aquele anúncio buliu com toda a cidade. A gente mais religiosa, balançava a cabeça, reprovando a exploração de um acontecimento bíblico e, ainda, sua realização no ambiente profano de um circo de rodeios.

Outros achavam aquilo uma bobagem, declarando que não acreditavam que um espetáculo dessa magnitude pudesse ser realizada num circo de touradas.

Mas, boa parte das pessoas da cidade estavam interessadas no espetáculo e, queriam ver a famosa e mágica do enterro de Cristo e seu reaparecimento, diante da platéia, pois já tinha ouvido falar da realização do tal espetáculo em um grande circo, durante a festa de Trindade.

A molecada da cidade ia no circo de qualquer jeito - mesmo que fosse só um espetáculo de montaria de touros e cavalos, seguida da apresentação de alguma dupla serteneja, já que não havia outra alternativa de diversão, a não ser assistir à televisão em preto e branco, com a imagem sofrível, como sempre.

Pouco depois de iniciada a divulgação do espetáculo, minha turma ouviu dizer que a cova do enterro já estava pronta, no picadeiro do circo. Descemos correndo para conferir. E ela estava pronta, mesmo. Sete palmos de fundura e o montão de terra ao lado.

Para quem cresceu num mundo de intensa religiosidade e crendice, aquilo assustava.

Lá pelas 19:00 horas, não conseguimos conter a ansiedade e, resolvemos nos descer para a praça da Matriz, para adiantar a compra dos ingressos.

De longe, avistamos o circo todo iluminado, uma cruz levantada por cima da coberta lateral.

Chegando mais perto, vimos um sujeito paramentado com aquela calçola típica dos faquires e uma longa toalha branca sobre os ombros, saboreando intensamente as últimas tragadas de um cigarro, distraidamente.

Era o cara do carro de propaganda. Moreno, meio baixo, barriga saliente e o pouco cabelo curto.

Seria ele o o interprete do Nazareno? A calçola (parecida com aquela que a gente via nos santinhos que ganhava na igreja) indicava que sim. Que decepção!

De qualquer forma, restava o interesse na tal da mágica do enterro e ressureição.

Depois da tourada, vieram os funcionários do circo (que, imaginem, também eram os toureiros) para preparar o ambiente, tirando a lona que cobria a cova, retirando as grades de ferro que cercavam o picadeiro e, enfim, trazendo a assustadora cruz, que foi deixada numa lateral.

Vou adiantar um pouco a história.

Crucificaram o cristo (truque bem feito, com pregos e uma sangueira artificial danada) e, o levantaram a cruz.

Lá em cima, depois de um trecho da música de suspense nos alto falantes, o "ator" declamou a esperada frase, de uma forma istroiônica e exageradamente pugente: "Pai, a ti eu entrego o meu espírito!" e, curvou a cabeça sobre o peito.

Beleza. Desceram o cabra da cruz, enrolaram num lençol branco e, levaram para a cova.

Depois de mais uns salamaleques, desceram o corpo na cova e, diante da platéia perfeitamente seduzida e aterrorizada, começaram a jogar terra por cima. Muito homem exclamou baixinho e muita mulher passou mal.

Em seguida, apagaram a luz do circo. e botaram o disco de suspense para tocar a faixa de suspense trombeteiro à toda, do começo ao fim.

Cena seguinte: dois peões, digo, "profetas"vinham ali, no centro do picadeiro, deitando suas falas (muito pouco à vontade, descalços, naquele roupão esquisito, amarrado na cintura).

Então acendeu-se uma luzinha na cortina do fundo do picadeiro, começou a tocar uma músiquinha alegre e cheia de violinos. E então os dois tipos, digo, "profetas" que estavam no meio do picadeiro começaram com aquele negócio de "Oh!, Ooooh! Oooooh!"

A cortina se abriu e entrou o cristo barrigudinho, com a calçola de faquir, a misteriosa toalha dobrada sobre os ombros, caminhando devagar e triunfante e assaz sorridente, para o centro do picadeiro, com os braços erguidos e exibindo as mãos ensanguentadas.

Que beleza! Sucesso! A platéia ainda meio atordoada aplaudia com entusiasmo a todos os participantes do espetáculo, isto é, Pedro (Asa Branca, o dono do circo), os dois profetas (os peões que também faziam o papel de centuriões), Maria (mulher do Asa Branca, eu acho), e claro, o locutor do circo, que fazia o papel principal...

Bom - não me lembro do fato, com detalhes. Mas, foi mais ou menos assim.

Vou publicar a baixa uma história que a H. me contou de ler a minha - e bem poderia ser chamada de "O crucificado da vila Carrão". Se veio até aqui, vá em frente, porque ela ela, garanto, é bem mais engraçada que a minha.

"Meu querido, o seu belo e envolvente texto me colocou diante destes circos de periferia, que com parcos recursos, nos enchem de sonho e magia!

Lembrei dos meus tempos de adolescente independente em São Paulo ,1977, tão longe de Belém e da família. Morava na Vila Carrão, Zona leste da cidade,e naquela entre vésperas da Semana Santa apareceu um circo destes por lá.

À medida que iam se alojando no grande descampando de chão piçarrento no final da rua, podíamos observar um leão “meia juba”, magriço e triste num canto da jaula, roupas gastas penduradas no varal e a julgar pelos remendos na lona as coisas não andavam muito boas para a recém chegada trupe. E como se não bastasse, logos os novos vizinhos começaram a pedir ajuda aqui e ali!

Espresta daqui, empresta dacolá, um certo envolvimento foi inevitável.

Afinal a maioria dos moradores das cercanias eram “baianos”, como eu, vindos de toda parte do Brasil tentar a sorte na cidade grande, gente que conhecia muito bem aquela situação, e com a proximidade da Semana Santa quase todos se solidarizaram com os artistas circences.

Pois bem!

Logo chegou o grande dia , o dia da encenação da Paixão de Cristo , expectativa geral, criançada alvoroçada, os mais velhos curiosos , como os pobres coitados haveriam de se arranjar? Um "Jesus" esquálido e bem apropriado eles tinham: Dema, o tratador e domador do leão, com seu cabelo e barba crescidos, um nordestino por volta dos seus 25 anos, visivelmente envelhecido e maltratado pela vida.

Silencio! Pssssssiuuu. O espetáculo vai começar! O cenário mal iluminado, a musiquinha triste e solene dava o tom daquele sagrado momento.

E lá estava eu, empoleirada na mal ajambrada arquibancada, com a minha patota (rs!era assim que se dizia) de adolescentes filhos de uns paranaenses e catarinenses que já estavam feitos em São Paulo, tudo corria bem , na hora das chicotadas se ouviu sons de chicotadas, na hora da coroa de espinhos o sangue escorreu, na hora da Madalena enxugar o rosto do Senhor apareceu a imagem do Cristo marcado na toalha... tudo conforme o riscado.

- E não é que eles trabalhavam direitinho?..., pensei.

O momento da tão esperada cruxificação se avizinhava, o primeiro cravo as batidas do martelo, os primeiros gemidos de dor, mais tinta vermelha escorrendo e o Oh! da platéia.

Repentinamente, comecei a ter um acesso de risos incontrolável.

Lembrei que vira o “Cristo” atracado ao prato, saboreando sonora e avidamente uma sopa que o pessoal do bairro servira para dar uma força aos artistas horas antes do espetáculo!

Olhava para o rosto mortificado do pobre ator e lembrava da cena da sopa.

Aquilo não combinava com a aura de santidade daquele momento..., pensava eu (lembrando que ainda hoje não tenho muito juízo imagine nos meus 17 anos!).

...Comecei a rir baixinho, um riso abafado, pensando:

- Quem diria hein! inda agorinha estava no pecado da gula, essa carinha de santo não me engana não, seu glutão...

Meu Deus do Céu, me faça parar de pensar estas coisas... Eu e a minha gaiatice, minha molecagem! Ai minha Nossa Senhora me ajude , não adiantava , estava possuída! Corria o risco de rir inda mais alto.

As pessoas olhavam para trás, com um ar severo e repreensivo. Eu, entretanto, não conseguia parar.

Um dos atores que estavam no palco se virou pra ver quem era a excomungada que ousava rir num momento daqueles!

- Minha nossa ele vai me atirar a espada!, pensei.

Ato contínuo, começaram a levantar a cruz. E agora? o senhor Jesus vai ficar de frente pra mim , com aquela cara de pedinte!, imaginava eu.

– Pai, perdoai a minha gula é que a fome era tanta, exagerei, mas o castigo foi grande por demais da conta ôxe!

Pensava na fala do Cristo! e levei a mão à boca contendo mais e mais o riso. Ia explodir!

Mas ...Deus protege os presepeiros! Preparei uma retirada às pressas, e para sorte minha e azar dos atores, ouviu-se um estalo e, a cruz levantada ameaçava quebrar com o peso de Jesus.

Os "braços" da cruz começaram a vergar ,pendia para um lado - suspense e corre corre geral...

Era a minha deixa , aproveitei o rebuliço e sai de fininho temendo que me crucificassem ou melhor me linchassem!

Afinal parecia que o meu risinho tinha quebrado o clima e, a cruz.

Fiquei sabendo depois, que a guarda romana e os judeus seguraram a cruz e enquanto esta desabava aos poucos... Mas, Jesus disse a celebre frase e rapidamente expirou! E o show continuou, ao final foram aplaudidos como heróis.

Grande troupe!

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No outro dia pela manhã foram embora, eu assisti a partida de dentro de casa, escondida olhando pelo vitraux entreaberto, meu coração adolescente estava com remorso! Puxa vida! mas na segunda feira seguinte já havia esquecido toda a história, na lida da fábrica de costura até as 17 horas e em seguida das 18 às 22 na fabriqueta em frente de casa!

E agora a sua história ressucitou a minha história , breve história ...

H! H! isto lá é coisa que se faça? Brincar com o Jesus Cristinho!

Que Deus perdoe, sá menina!"