TESTEMUNHO DE UMA TRAGÉDIA

A moça era simples, honesta e trabalhava na loja da rua de baixo, em frente.

A família era humilde, mas gente muito boa. Ao chegarem na cidade, vindos do interior, com muita luta e esforço haviam conseguido aquele espaço pra construírem sua casa e até então ali viviam sem problemas.

Havia o incoveniente da subida, mas a vista era linda e todos ajudavam a manter a vida com a dignidade do trabalho e do dever cumprido, contribuindo para aumentar o conforto mútuo, dentro do possível.

A casa era simples mas bem equipada, tendo geladeira, máquina de lavar e um bom fogão à gás, entre outras coisas.

Tinha pouco tempo haviam se quotizado para ter uma Tv de plasma e com as ofertas sem juros das casas Bahia, tinham adquirido uma de 42 polegadas no mês anterior. Era um sonho ver os jogos da Copa com uma boa transmissão em casa.

Maria tinha uma filha ainda pequena que não completara ainda os 6 anos. Moravam na mesma casa ela, o marido e filha, os pais e um avô materno já bem velhinho.

Naquele dia o temporal não parava de castigar a cidade. Parecia que um dilúvio havia descido dos céus com intenção de lavar a vida, mas de certo que a sujeira era tão grande que uma chuvinha à toa não bastaria pra isso.

Já no finalzinho da tarde, Maria estava preocupada com a demora do marido em chegar. Algumas casas por perto haviam sido devastadas pela água e ela temia viver o mesmo horror, por isso se preparava para ir pernoitar na casa da irmã em outro bairro menos atingido pelo temporal.

Enquanto aguardava ansiosa assistia os noticiários na Tv e tomava ciência de que muitas pessoas estavam sofrendo perdas devido às enchentes e desabamentos, mas tinha esperança de que com ela nada daquilo iria acontecer.

De repente um barulho de explosão chamou sua atenção do lado de fora. A luz faltou imediatamente e a casa ficou na escuridão. Pensando ter ouvido uma batida de carro na estrada próxima, correu para lá a fim de se certificar de que nada teria acontecido que pusesse em risco a vida do marido, já no horário da chegada. A filha dormia no sofá, o avô cochilava na cadeira de balanço e os pais também estavam ouvindo as notícias na hora do súbito apagão.

Maria correu pela rua estreita junto com outras pessoas da vizinhança que também haviam se assustado com o barulho.

Tudo aconteceu em um lapso de minutos. Nem bem havia chegado ao largo da pracinha improvisada pelas chuvas do dia anterior, Maria viu horrorizada sua casa e mais outras tantas desabarem pela encosta como se fosse de papel, formando uma grande e tenebrosa cachoeira de terra, entulho e água, feito vitamina densa de objetos estranhos.

Ela parou estarrecida, em choque e assim ficou por alguns minutos sem nada entender. Os gritos das pessoas que a tudo também assistiram a despertou para a terrível realidade: sua filhinha, onde estaria? Viva? Morta? Seus pais? Seu avô? Onde e como estavam?

Um silêncio mortal anunciava que nem chamar por socorro foi possível a quem desceu naquela enxurrada. Tudo e todos estavam soterrados na lama que a chuva intermitente não parava de empurrar.

Maria correu de um lugar para outro gritando por ajuda. Com ela outros tantos tentavam enfrentar a lama e remexiam nos entulhos na tentativa de ainda ouvirem algum chamado da família perdida.

Quando a Defesa Civil chegou eles ainda estavam lá, num mutirão de dar dó, chorando mais que a chuva e reforçando com aquelas lágrimas de dor o pranto dos céus!

Vi quando o marido dela chegou apavorado e se juntou a eles na luta contra o nada! Vi os dois abraçados, sujos de lama, cobertos de amargura, tentando se amparar e chorei com eles e por eles...e por tantos outros iguais a eles também...

Mas a chuva não viu nada daquilo que vi e continuou a cair insistentemente castigando sem parar os que ficaram por muito tempo ainda....

Depois disso Maria nunca mais seria a mesma moça alegre e feliz que sempre tinha sido. Uma culpa por haver sido poupada iria corroê-la dia após dia. Nem uma foto da filha ou da família sobrou para lembrar dos que se foram...nada ficou além da terra lavada sobre a encosta, como se a paisagem fosse sempre assim naquele lugar.

Pela memória dos desabrigados de Niterói, a minha cidade que hoje não é mais "sorriso" como sempre foi!(2010)

Cristale
Enviado por Cristale em 08/04/2010
Reeditado em 20/03/2013
Código do texto: T2185371
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