SOBRE CACOS DE VIDRO
São catorze e sete. Um gato sapateador, em absoluta segurança, caminha sobre os cacos de vidro de um muro. No lado de lá, cães ferozes soltos. No lado de cá, uma piscina. O gato olha os cães e mantém-se impassível. Mas a água olha com respeito, temendo-a discretamente.
São catorze e onze. O gato retorna sobre os cacos como se pisasse em plumas. No lado de lá, os cães espumam as bocas. No lado de cá, a água se finge de morta. O gato que eu vejo, sob o sol e sobre o muro, desenvolveu uma técnica especial para vencer seus medos. O gato, que eu vejo e invejo, aprendeu a caminhar sobre os cacos de vidro por causa dos cães e da água.
Se não fossem os cães, ele saltaria à grama e faria uma festa caçando grilos e pardais. Se não fosse a piscina com água, o gato poderia deitar-se nas esteiras, como fazem a vizinha e as amigas nas tardes de março. Mas o gato, além deste muro com cacos de vidro, tem poucas alternativas. A menos que opte pelo risco dos dentes dos cães. Ou escolha a água, precisando superar a herança dos antepassados. (Será que os gatos não ficaram traumatizados com o dilúvio? Sabe-se lá, se Noé não os teria deixado entre os últimos a carregar na arca. Difícil entender este medo de água dos gatos!)
Ah, se eu tivesse sete vidas! Também seria audacioso nos riscos. Desdenharia os afogamentos e aos dentes dos cães dirigiria meu sorriso irônico. Como não tenho, deixo que o tempo me morda. E ando afogado nesta utopia de conciliar cachorros e gatos.
Viver é caminhar sobre o vidro vencendo todos os medos: a violência dos dias, as incertezas do futuro, os muitos sonhos para pouca audácia. Que inveja tenho do gato sob o sol desta tarde de inverno!
O gato olha pra lá, o gato olha pra cá, o gato olha pro muro, o gato me olha. Coçando os bigodes, debochado me desdenha, e segue soberbo seu rumo sobre os cacos de vidro.
Exceto quanto aos medos e riscos, eu e o gato na tarde temos muitas diferenças. Tenho apenas uma vida, ele sete. Seu é o muro, meu é o mundo. Sobre o mundo apenas vou. Não tenho esta chance de ir e vir várias vezes para pegar prática.
Nesta tarde de inverno, vejo a empáfia do gato sobre os cacos de vidro. Vejo e invejo. Discretamente, vejo. Discretamente, invejo. E sigo a vida entre vidros cortantes sob os pés, sobre a cabeça, pelos lados... e dentro de mim.
*De meu livro POR QUE OS HOMENS NÃO VOAM? WS Editor, 3a. Ed. 2006.