O semestre

Lá fora dava para ouvir o ti-ti-ti. Mas era tanta gente falando coisas diferentes, que Felipe não ouvia nada, apenas algumas palavras soltas. A sala possuía um infernal ar-condicionado barulhento, extremamente frio, deixando o ar seco e difícil de respirar. Lá tudo estava meio bagunçado, com folhas, jornais e fichas. Na parede a bandeira do Brasil, brasões e fotos da corporação.

Pega o jornal e vê a foto de Arnaldo. Ele está com uma cara de comportado, provavelmente no dia de sua primeira comunhão. Felipe começa a constatar que será aquela imagem que todos terão do desgraçado. Não saberão quem é este menino que tanto fez sofrer os mais fracos da quinta-A.

Felipe, então, lembrou do seu primeiro dia de escola. Sua timidez e medo quase o impediram de entrar na sala de aula e encarar o rosto de seus colegas. Ele era extremamente magro e baixinho, com duas grandes orelhas de abano. Os segundos entre a porta e a sua carteira foram uma via-crúcis que nunca esquecerá. Imaginava o que cada um dos meninos estava pensando dele, como ririam, como ele seria humilhado. Não sabe, na verdade, como foi a reação dos colegas, pois Felipe mirou num ponto fixo, na parede branca e não viu nada do que aconteceu. Apenas andou e se acomodou na segunda fileira.

Para sua surpresa, na hora do recreio, foi abordado por dois outros meninos, que o chamaram para conversar e dividir a merenda. Neste momento, relutando inicialmente, Felipe sentiu a grande generosidade daquele ato e o seu medo das coisas e vergonha de si mesmo transformaram-se numa imensa alegria, que poucas vezes havia experienciado, nesta curta vida de dez anos. Marcelo e Daniel seriam seus grandes amigos desde aquele dia.

A primeira aula da quinta série acabou transcorrendo normal. Felipe nutria um misto de surpresa e interesse, pois não era mais uma tia que o acompanharia durante todo o ano, mas vários professores, que entravam e saíam da sala com suas maletas, em disciplinas diferentes. O mais estranho foi ter um homem comandando a sala de aula, uma espécie de intruso, naquela função que era exclusividade feminina desde o maternal de Felipe.

No segundo dia tudo parecia normal, com deveres e anotações no quadro. Eis que chega, atrasado, Arnaldo. Ele era bem maior que a média da turma e isso não se dava apenas por ter repetido a quinta série, mas também pelo seu desenvolvimento irregular. Arnaldo usava uma camisa de uniforme bem curta, além de velha e desbotada, talvez aproveitada de seu irmão mais velho, talvez doação de alguém com um número menor. O menino possuía a sombra de um bigodinho, típico desta idade onde a gilete ainda não faz parte dos itens de toalete.

Arnaldo era sério e triste. De cabeça baixa na aula, às vezes dormia, às vezes saía para ir ao banheiro, voltando 20 minutos após. O primeiro contato entre Felipe e Arnaldo foi no corredor, em uma destas matadas de aula. Pela primeira vez Felipe encarou aquela enorme pessoa, sentindo um medo incomum. Outros encontros aconteceram, mas o pequenino evitou, desde então, olhar aqueles olhos assustadores.

Depois de um bimestre, as coisas já começaram a mudar em sala de aula. Felipe vivia com seu grupo, Arnaldo, por sua vez, se aproximava mais daqueles meninos que, irremediavelmente, tendiam para a delinqüência. Com seu grupo formado e mais seguro, o grandão começava a se soltar mais. Passaram a aterrorizar os professores nas aulas, realizar pequenos atos de vandalismo e, como não poderia deixar de ser, agredir seus colegas mais fracos e bobos. Não demorou para Felipe sentir a fúria de Arnaldo e seu grupo. Foi na segunda vez que o encarou, no mesmo corredor de antes. Empurrões e exigência de dinheiro se seguiram, além de rasteiras, tapas, socos e humilhações em sala, como deixá-lo só de cueca. Justamente no dia em que sua mãe separou aquela cueca do Batman!

Pensou em falar com os pais, em reclamar com alguém da escola, mas imaginava que seria ainda pior ser visto como um bebê chorão. Acordar era um grande sofrimento e durante a aula contava as horas para ir embora. Começou a ficar desmotivado, tirar notas piores, ficar até sem comer.

Imaginava como sua vida seria melhor sem Arnaldo, como seria pensar em algo muito bom, sem que a imagem do encrenqueiro atrapalhasse e lhe dissesse: “Não, Felipe, não se anime! Não fique contente com o bolo de chocolate nem com o beijo da mãe. Não fique feliz com a proximidade das férias, nem com o presente de aniversário. Tudo que existe de bom é anulado pela existência de Arnaldo!”

Por volta de julho, final do semestre, havia um boato de que Arnaldo mudaria de cidade. A esperança voltou a fazer parte da vida de Felipe. Não ligou para o tapa na nuca, nem para os cinco reais que teve que dar naquele dia, pois sabia que tudo ia acabar, brevemente! O magricelo voltou até a sorrir e pensar que as coisas seriam boas. Mas, como já era de se imaginar, o pai de Arnaldo não conseguiu aquele emprego longe e o inferno continuaria na vida de Felipe. O grandão conversava com seus amigos e ria. A felicidade dele em continuar na cidade e na escola não comovia nem um pouco Felipe, que não conseguia pensar em nada, só sentir raiva de Arnaldo, do mundo e dele próprio. Aquele semestre acabaria, mas outro estava por vir, com o mesmo sofrimento.

Era 16 de julho o dia em que aconteceu. Felipe planejou tudo, pois sabia a hora em que seu inimigo saía, e passava, sozinho, pela rua do bequinho. A arma de seu pai estava guardada junto com a merenda e os cadernos, num lugar bem acessível. Foram cinco tiros de ódio, três no peito, dois na cabeça. Arnaldo, caído e ensangüentado, pela primeira vez, aos olhos de Felipe, era inofensivo e não podia mais lhe fazer mal.

Felipe lembrava de tudo naquela sala fria da Delegacia de Menores. Ouve todo o barulho, mas não sabe que sua vida está sendo discutida em programas de televisão, fóruns na internet e mesas de bar. Não sabe que virará tema de tese de mestrado e doutorado, nem que o apresentador quer pena de morte para ele. Não sabe que existe uma mesa sobre maioridade penal, outra discutindo o desarmamento, além daquela sobre bullying.

Felipe pensa em poucas coisas. Não consegue nem chorar, nem mais sentir ódio ou tristeza. Só olha a foto de Arnaldo e lembra da vez que o encarou no corredor. Acabou, acabou, acabou….

Gabriel de Barcelos

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