“Uma dúzia de rosas brancas..."

“Uma dúzia de rosas brancas, meia de rosas rosas e rosas vermelhas…’ Escolhia o comprador ao ‘dedaço’. O vendedor apenas conspirava conspicuamente, meio olho no veado. O comprador, alvo encorpado, olhos azuis, finos lábios, mas encobertos de feridas de cigarro, assim como demonstrava o saltitante amarelo de seus dentes. Seu perfume fedia a loja inteira. Fedia uma fragrância quase sensual a quem a sentisse, mas um tanto quanto repugnante após os sobrevividos três primeiros minutos. “Aqui...” Dedilhava, “mais uma meia dessas rosas rosas, e... Tem girassol?”

Girassol? Pensava o vendedor, homem miúdo, cabelos claros, olhos cor de feijão, pele cor do pecado, mãos de seda, peito de veludo. Que quer esse homem com um girassol no meio das rosas? Seu olhar provavelmente o entregou, porque o comprador, intrigado, parecia desistir.

“Não, esquece a porcaria do girassol (era paulistano, notavam os olhos do vendedor). Tem dente-de-leão?”

“Hm... O senhor não prefere copos-de-leite? Temos algumas violetas lindas, e a Marília faz um maravilhoso arranjo com jasmins... Se for pra enterro o que se recomenda o senhor sabe, não sabe?” Atrevia-se o vendedor com sugestões, agora olhares primeiro ousados, logo retraídos pelo engrossamento inevitável do ar do comprador.

“Perdão, amigo... Você se chama?”

“Álvaro, companheiro.” O vendedor sorria e cumprimentava. O aperto de mãos ocorrera com certa distância inexistente, mas o que existiu depois foi a quebra do gelo, antes a congelar ações e reações. Chamava-se Piamenta, este outro, o alvo.

“Pois não, Álvaro, isso aqui não á pra enterro coisa nenhuma, meu. Isso aqui é pra uma pessoa muito importante... Mas, sei lá, meu, o cara é sensível...”

“O cara?” E que raios de nome era aquele? Dizia-se só.

Lapso psicótico.

“Que cara?” Disfarçava Piamenta.

“O senhor disse que ‘o cara’ é sensível...” Freud explica.

“Nada de cara... Disse que a pessoa é sensível, rapaz, tá me ouvindo mal?”

“Não...”

“Então tá. Vamos começar de novo. Essa pessoa é muito especial pra mim, tem um gênio horrível... Sabe-se por que teve um desses surtos, e eu não entendi porra nenhuma! Quero ver se conserto com flores, mas nunca fiz isso antes.”

“Fez o quê?”

“Mandar flores. Nunca mandei flores antes, meu... Nem sei mesmo como se escolhe, mas também não tira onda aqui do papai porque enquanto você vem com o bolo, eu trago a farinha!” E aqui Piamenta se ria só, encostando seu ombro ao ombro do vendedor, este um tanto quanto deslumbrado, mas isto já não demonstrava seu olhar, apenas fingindo não perceber a dita asneira.

“Desculpe eu perguntar, já que estamos entre amigos e a Marília está lá fazendo seu arranjo,” não estava, Marília espiava de rabo de olho, sempre procurando um rabo de saia, “não vai, Marília?”

“Que arranjo?” Perguntava ela, cotovelo no balcão, mão ao queixo.

“Dúzia de rosas brancas, dúzia de rosas rosas e meia de vermelhas, duas violetas e um toque de margarida por conta da casa, três copos de leite e faz aquele arranjo com jasmins que só tu. Mas vai, menina!” E ela ia, resmungando, já tinha se apegado ao teor do papo.

“Você dizia?”

“Dizia que o senhor, se me perdoasse a curiosidade mineira... O que aconteceu pra dar esse surto todo?”

“Ciúmes, menina...” Outro lapso, este mais grave, saía a palavra, Piamenta engolia a lingua e como que em efeito-bocejo, Álvaro, contagiado, engolia a sua.

“Perdão? Não lembro ter dado tanta intimidade assim, não!”

“Não, não, perdão digo eu, companheiro!”

“Agora é petista!”

“Não! Desculpe, eu estou estressado mesmo, vê se dá um desconto. Nunca mandei flores, já não disse?”

“Disse sim (e pra dentro:), menina.”

“...”

“Quer saber, moço, fala pra menina de lá (ironia demarcada) se apressar com o arranjo que a conversa das meninas aqui está me deixando nervosa.” Lapso gravíssimo, contundente, evidente.

“Mando sim.” Ora, novamente ressurgiam os falantes olhares do vendedor abaixando a guarda do poker social e voltando à realidade mais pura e aberta. 'Denunciou', diziam seus olhos. Piamenta bem os compreendera e, agora volteado ao lado, coçava a nuca com as unhas da mão esquerda, relógio brilhoso e dourado ao pulso.

'Exibe', pediam os olhares, Piamenta tudo percebendo destes desnudos do vendedor. 'Exibe a grana que eu gosto.'

“O senhor é daqueles metros, é?” Sem resistir, Álvaro perguntava, ‘rindo-se com moderação’, pequena reboladinha, igualmente ‘percebida com moderação’ pelo cliente tímido.

“Por quê? Tá pensando que eu comprei isso aqui em metrô, rapaz?” Re-exibia o pulso e o brilho do relogio. Depois do desabafo ao surto, ressentia algum embaraço, mas duvidava.

“Deixa quieto.” Respondia Alvaro.

Marília chegava quieta, ainda procurava o som da prosa.

“Aqui estão as flores. Acho que o cara vai gostar.” Piscadela, entregava o grandioso bouquet ao cliente.

“Que cara, rapaz?”

“Deixa... Deu cinqüenta e três reais, amigo. Fiz certinho pra você e não cobrei a mão de obra da donzela.” Recebia o dinheiro, abria o caixa, fechava o caixa, mãos ao balcão.

“Até mais, hem?” Despedida acompanhada de medida, baixo a cima. Quase na porta, já tendo revirado de olhadela duas ou três vezes, se parou Piamenta e com intenção de última ‘deixa’, retrucou:

“Eu não sou gay!”

“Mas eu sou, menina!” Gargalhadas dos dois vendedores, em coro.

Já saído o ex-cliente, comentavam em decoro:

“Sei...”

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Duas ruas, esquerda, quatro quarteirões, esquerda, Av. Angélica até a Maceió, contorno até a Sabará, e Piamenta chega aos braços de sua esposa, casa fedendo a perfume quase sensual, repugnante aos sobrevividos três minutos, mas tudo muito suportável graças às flores e à ocasião. A graça de Álvaro não lhe saía da cabeça... “O cara...” E se ria, sem moderação, enquanto se ria junto ‘à menina’.

RF

(27 de Marco, 2006)

O Intenso
Enviado por O Intenso em 17/08/2006
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