DEFENESTRAÇÃO (Luís Fernando Veríssimo Veríssimo)

Pretendo, postando esta crônica de Luís Fernando Veríssimo, ressaltar o quanto de profético pode haver numa obra de ficção, que muitas vezes é superada pela realidade. Afinal o autor não poderia supor o quanto seria farta e lamentavelmente usado, como nestes dias, três décadas após a edição desta crônica, o verbo DEFENESTRAR.

"Certas palavras tem o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A falácia Amazônica . A misteriosa falácia Negra.

Hermeneutas deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.

-Os hermeneutas estão chegando!

-Lh, agora é que ninguém vai entender mais nada...

Os hemeneutas ocupariam a cidade e paralizariam todas as atividades produtivas com seus enígmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisa recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.

-Alô...

- O que é que você quer dizer com isso?...

Traquinagem devia ser uma peça mecânica.

- Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.

Plúmbeo devia ser o barulho que o corpo faz ao cair na água

Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.

A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um som lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:

-Defenestras?

A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas...Ah, algumas defenestravam.

Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria assim defenestradores profissionais.

Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo tê-la usado uma ou outra vez, como em:

-Aquele é um defenestrado.

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exata.

Um dia finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês defenestration. Substantivo feminino, ato de atirar alguém ou algo pela janela.

Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal,não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?

Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.

-Les defenestrations. Devem ser proibidas.

-Sim, monsieur le ministre.

-São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.

-Sim, monsieur le ministre.

-Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: interdit de defenestrer. Os transgressores serão multados.. Os reincidentes serão presos.

Na bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.

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(Luís Fernando Veríssimo. O Analista de Bagé. 6ª ed. Porto Alegre.L&PM ed. 1981. p. 29-31)