O SILÊNCIO DOS PECADORES - Rep.
É Sábado de verão, logo pela manhã ainda com gosto de leite na boca me pego reinaugurando meu bar preferido. Ocupando uma mesa de canto muito próximo a calçada, sinto após os primeiros goles uma estranha expansão de meus sentidos; começo por escutar a sinfonia aflita do cantar de pneus no asfalto em seus acordes dissonantes, gemendo desavergonhadamente junto ao mar. O som da marulhada, entoando em contraste á melodia aguda num uníssono descompasso, se enche de tristeza em meio a cacofonia comercial, que agora soa desajustada em segundo plano.
O barulho de carros, motos e caminhões até que soa agradável em comparação à ladainha gemida pela televisão mal sintonizada do bar, de onde sobressai o volume das conversas dos mais antigos freqüentadores dessas paragens; aposentados, companheiros de copos, pratos e praia, narrando uns aos outros as velhas e repetidas histórias de suas vidas. Rememorando os velhos e difíceis tempos parecem esquecer onde estão. Mergulhando na fantasia utópica de profundos e demorados goles etílicos, transportam-se ufanamente aos 'tempos de fartura'. A maioria, de audição comprometida, comunica-se da única forma que tal balbúrdia permitia, aos gritos.
E assim transformavam a calma ladainha sexagenária num santuário belicoso de berros e hinos de clamor, tal qual escapamentos furados.
Agora, acrescente a tudo isso o inenarrável "prazer" que nos proporcionam os ruídos musicais da velha eletrola soltando a toda; Axés, Pagodes, Sertanejos e similares, todos com qualidade questionável. Assim começa o calvário de todo bom freqüentador de Bar, além da música, há o espetáculo na calçada: o diário desfile de uma variedade sem fim de cães defecando, ladrando e se pegando com seus donos nas guias; bicicletéiros sinuosos sobre a calçada na mira de algum incauto; caçadores de latinhas com martelos nos calcanhares, enfim, todos com coreografias próprias, elaboradas numa visão apocalíptica da breguice em sua forma mais pura e grotesca.
Em meio a tudo isso, bem a nossa frente, alguém abre o porta-malas do carro e desanda no volume da barulheira infernal; um melodioso "bate-estaca" musical, aqueles que está na moda escutar. Argh!! É difícil decidir o que incomoda mais; o som do porta-malas à plenos volumes ou a verborréia inconseqüente que sai das bocas nervosas daquela gente (...), talvez, vítimas que foram, quando crianças, de maus tratos por alguma babá inescrupulosa. Quando acho que já vi de tudo e que as coisas não poderiam ficar piores, aparecem as versões “feminis” dos arautos da balbúrdia; todas iguais em sandálias, biquínis e cangas, como que recém-saídas de uma fábrica de enlatados de produção em série. Elas conseguem apenas piorar o já trágico complexo daquela ilha de barulho. Com suas vozes estridentes e risadas enérgicas, elas completam a tragédia sonora do lugar. Logo a ala geriátrica pensa em ir embora, afinal, não têm mais idade pra se submeter aos tantos absurdos. Só uns poucos, completos surdos, ainda resistirão. Com a ameaça de saída dos veteranos, acodem as mesas aquelas figuras tão conhecidas pela gravidade e complexidade de suas longas conversas, incompreensíveis em seu vasto vocabulário chulo.
Tudo indica que é hora dos idosos irem embora. Porém, antes de abandonar o local, fazem questão de colaborar com sua parte para a matança do silêncio; em intervalos soltam berros para o atendente trazer a conta. Atravessando, em passos reptilianos, o campo hormonal que se tornou o seu boteco preferido, tentam sair dali á gotas. Na calçada, em desequilíbrio-labiríntico-etílico-alucinante, sem saber bem para onde ir, alguns param de repente..., com olhares perdidos no horizonte em meio ao som dos carros e motocicletas derrapando na curva, da chuva batucando no plástico do toldo vermelho, das ondas agitadas do mar rugindo contra as muradas do quiosque do "Turco loco", do apito a vapor da locomotiva do vendedor do amendoim, da estridente matraca do vendedor de biju, da gaita do afiador de facas, do mega-falantes do vendedor de Pamonhas, etc
Tentando deletar tudo isso, cansados, partem oscilando como se estivessem em meio a uma ventania.
Observando e escutando todo esse caos sonoro, você chega à triste conclusão; felizes mesmo são os surdos (Estou quase lá!). Hehehe!!
Chega, já está na hora de procurar outro boteco e dar continuidade aos “trabalhos” vespertinos, no embalo de dançar a noite no baile dos “surdos-mudos" ou mostrar o que resta de minha beleza no “Lar das moças cegas”.