O Pé: Meu herói esquecido
Está decidido: Meu herói é o pé. (Os pés). Esse anônimo sofredor congênito. O que ele suporta! Nosso querido pé é um eterno injustiçado. (Algumas vezes vou falar no singular para melhor pronunciar, mas leiam sempre ou quase sempre “pés”). Ele só é lembrado quando há um tropeção ou quando pisa em espinhos, quando chuta pé de mesa, quando o calçado é menor, quando pisa em bituca de cigarro aceso, etc.
E o coitado nasceu para sofrer. Vejamos:
Nascimento: Essa é a melhor fase. E a mais curta também. Nos primeiros tempos ele é acariciado pelos pais corujas, beijados, venerados, até. Calçam sapatos de crochê, cuidam ao máximo. É a preparação para o que vem pela frente. Mas logo chega a hora da iniciação: é calçado, começa a agressão, que nunca mais acabará, pelo resto da vida. E toma tropeções e esbarrões, e nessa mesma época já se começa a pisar no que não deve: sobra de comida, seu próprio cocô, cascalho, com azar cigarro aceso dos pais mais relapsos. Xixi é uma norma. A criança começa a andar e a irrigar seus próprios pés, como se fossem uma planta. Se o solo for de chão batido, aí sim, o pimpolho começa a fazer tijolos com os pés. E até se diverte com isso.
Começando a calçar regularmente: Os pais esquecem que ele está crescendo. Insistem em esticar o uso daquele par de tênis caros por mais uns meses. E começam a proibir de andar descalço sob a alegação de que pode ficar resfriado. Coitado dos índios.
Andando descalço: Conheço pessoas que andam descalço quase a vida inteira. No interior do Brasil, nas roças, tem bastante disso. Conheci o Sr. Raimundo, pezão rachado, quase nunca calçava, nem em dias frios. Foi trabalhar como ajudante de pedreiro numa construtora em que trabalhei. De imediato deram-lhe umas “botinas de segurança”. O coitado sofreu com elas perto de uma semana, até que veio a dura realidade: ou trabalhava calçado ou perdia o emprego. A segunda opção venceu.
Certa vez fui com uns amigos a passeio numa fazenda. O anfitrião, moço simpático de uns 30 anos, muito acolhedor, também só trabalhava descalço. E pensa em uns pés feios! Ia para o roçado todo dia, para os currais, sempre descalço. À noite fomos pescar e ele, como de costume, descalço nas margens do córrego, submetendo nossos heróis à riscos imprevisíveis. Tempos depois tive notícias que uma cobra mordeu-lhe o pé. Graças a Deus que não aconteceu o pior.
Higiene: Se o dono é de higiene duvidosa, eis o repugnante chulé. Nunca vi chulé nas mãos, na cabeça, nem na barriga. Só nos pés. E não é só falta de higiene não. É o trabalho pesado mesmo. Onde se é obrigado a calçar botas de borracha é uma penúria. Quando se tira-as no fim do dia, os dedos chegam estar enrugados de tanto únidos. E fétidos.
Peso dos pesados: Os obesos, esses sim, são um exemplo de agressão aos humildes e humilhados pés. A estatura de uma pessoa, segundo regras, medidas, comparações, tabuadas, etc, etc, diz que um corpo adulto deve ter algo entre 50 e 90 quilos, resumindo, dependendo da altura. Existem pessoas que pesam 100, 120, até 130 ou mais. Tudo em cima dos coitados e esmagados pés. Esses sim, são exemplos de abnegação, resignação e humilhação eterna. Sofrem com o peso, com as unhas encravadas, com a má circulação conseqüente e freqüentemente com o chulé também.
Unha encravada: Por vezes vemos pessoas indo ao Podólogo. (tratamento vip para poucos endinheirados), para desencravar a unha. Mas isso após uma semana inteira de penúria dentro de um calçado apertado. Essa história eu sei contar de cadeirinha. (A unha encravada, não a visita ao podólogo).
Sapato apertado, número menor: As mulheres, ao lado dos obesos, são campeãs em agressão aos seus queridos pés (muitos homens também): Usam uns saltos em forma de cunha, fico a imaginar, quão dolorosa é a agressão aos pés, com um calçado de salto muito alto. E elas o usam no dia a dia, para trabalhar, irem ao supermercado, divertir! Conheço algumas que dizem que se não estiver de salto, sentem-se nuas.
Carteiros: Esses são outros que exigem de seus pés o máximo. São quilômetros à pé, de segunda a sábado. Tenho visto que usam um calçado padronizado, deve ser confortável. Antigamente cada um calçava o que conseguia comprar. Será?
Atletas: Maratonistas, corredores, saltadores, e afins. Esses dependem dos pés mais que eu dependo de minhas mãos. Certamente tem seus tratamentos especiais, como e fossem bichos de estimação. São cuidados, massageados, unhas aparadas, cantos lixados, calcanhares cuidados com esfoliantes, perfumados. São a ligação entre o atleta e seu troféu. Ou suas derrotas.
Jogador de futebol: Estes merecem comentários especiais. O que os pés desses atletas sofrem chega a ser constrangedor. Quem não joga futebol, tente calçar um par de chuteiras e andar por aí. Eu já fiz isso, saí assim meio parecido que sobre patins, tentando equilibrar. Nas horas de ação, é correria, freada, pisadas, chutes. Milhares de chutes, Quanto mais potente melhor, obrigatoriamente só podem usar os pé. Naquele momento pensam em tudo. Até na bola. Nunca vi alguém pensando no sofrimento dos pés do atleta na hora do jogo.
Bailarinas: Dá arrepio, só de imaginar os coitados pés. Passam a vida inteira apoiadas na ponta do dedão. Vamos pular essa parte? Tirem suas conclusões. Te juro que se existisse associação de proteção aos pés, como existem de proteção aos animais, eu iria me filiar e proibir o balé clássico. Iria ser uma perda imensa, mas valeria a pena. Não proibiram a farra do boi, no sul? Não querem proibir os rodeios? Não proibiram as brigas de galo? Nunca pensaram nos sofridos pés das bailarinas.
Sambista: Outra raça de animais sofredores: Pés de sambistas. Aquele tamancão imenso, a sambista sambando desenfreadamente. Confesso que é maravilhoso de ver. Mas os coitados sofrem verdadeira barbárie.
Mulheres chinesas: Outra forma de agressão aos pés que dá um frio na espinha só de pensar. Hoje não, elas modernizaram, penso eu. Mas já vi relato que nas culturas antigas, a moda era pé muito pequenos. Então elas calçavam muito menor que seus pés, desde muito cedo, para impedir o crescimento de seus pés. E depois o quebravam ao meio, para ficar graciosos num salto alto esquisito.
Fabricação de vinhos: Sim, nosso herói pé já teve seus dias de glória, quando eram usados como ferramenta de fabricação de vinhos, amassando uvas nas grandes tinas. Eu queria ser um desses pés.
Eu poderia enumerar por páginas, as mais diferentes formas de agressão ao nosso amado, indispensável e esquecido pé. Mas paro por aqui, quem sabe um dia faço uma biografia completa, sob a batuta de um ortopedista.
O dia internacional do pé: Nunca pensaram no dia internacional do pé. Como não foi criado ainda, poderia ser hoje. “8 de abril, dia internacional do pé”. Já que não foi criado ainda... (ou foi?)