OS OLHOS DE BORGES OU O LEITOR CEGO

A visão é o meu sentido mais caro. A cegueira foi sempre o meu maior temor. Mais que isto, me desespera a idéia de ficar sem ver, ainda que temporariamente. Ficar privado da leitura, não apenas das palavras, mas dos objetos do mundo e de suas paisagens. Seria o mais cruel dos castigos imagináveis. Viver sem luz. Viver na negridão. Viver sem ver.

Falo aqui da cegueira física. Mas há também a cegueira que vela, adormece a alma, entorpece o espírito e nos faz medíocres. Único temor que em mim supera a perda do sentido da visão.

Não sei como é para a maioria das pessoas a relação com a visão e a leitura. Será que a leitura revela o mundo ou o reduz às palavras? Não tenho resposta. Mas aprendi que a palavra precede a luz. E me fez o que sou. A luz do mundo sempre foi a palavra. Sem ela não há qualquer universo.

O mundo só existe mediado pelas letras. Por isto amo o escritor argentino Jorge Luis Borges, que mesmo cego continuou sua carreira literária. E só de sua imaginação poderia ter surgido o aleph – uma pequena esfera que conteria o universo.

Em meus pesadelos sempre vejo Borges tateando as prateleiras labirínticas de suas bibliotecas extraordinárias. E me desespero por esta imagem. Como admitir ter as palavras nas mãos, porém inacessíveis aos olhos?

Há uma outra imagem, também de Borges, que me atordoa e me faz suar ao sono. Ele desce ao sótão, vacilante, chega ao plano, e escorrega em dezenas de alephs espalhados pelo chão. Levanta-se. Agacha. Apanha alguns alephs em suas mãos e tenta sentir a sua textura. Mas nada sente, pois os universos revelados através dos alephs só estão acessíveis aos olhos. Borges fecha os seus, o que não faz efeito algum, pois seus olhos já não viam. Vejo seu semblante triste, transpirando lágrimas. Levanta o rosto para o alto, que é alumiado através da fresta da sala. E posso ver, pela primeira vez inteiramente iluminada, a face de meu pai. Borges é meu pai e me fez de suas palavras.

Valmelo Peresia
Enviado por Valmelo Peresia em 08/04/2010
Reeditado em 07/05/2010
Código do texto: T2184127
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.