O baú de recordações (1)
Por muito tênue que as recordações sejam, elas permanecem sempre no baú, à espera que num dia de chuva seu fiel amado possa aparecer para deitar mãos sobre o passado, que nem sempre nos correu de feição. As recordações são uma espécie de passado andante, que a cada dia que corre se torna mais irrequieto dentro desse espaço fechado. Lembro-me vagamente de deitar mãos numa foto minha de quando eu era criança, fotos é coisa que eu não gosto, e tirando aquelas que permanecem no baú, nada mais tenho para recordar minha vida. Não pretendo deixar nada que me possa incriminar após a morte.
A foto, foi tirada por minha mãe no ano de 1989, tinha eu na altura seis anos, era já uma criança com cara de doente, sempre tive aspecto de enfermo, muito por culpa de problemas respiratórios, ainda que hoje tenha uma aparência saudável, vez por outra surgem os problemas de infância. E quanto a isso não posso escapar. É uma sentença pré-anunciada, da qual não posso fugir. Do lado direito da foto está um amigo de infância que perdi de vista, não sei onde foi parar. O vento o levou. Éramos amigos inseparáveis, que corríamos descalços sob olhar atento de minha mãe, por vontade dela eu deveria andar em plumas, mas eu gostava era de me esponjar na areia. Nesse mesmo dia, tinha eu e meu amigo tentado descobrir o que era a galinha dos ovos de Ouro, por detrás da igreja havia um galinheiro, onde galinhas berravam ao ritmo dos sinos, segundo os crentes, essas galinhas eram especiais, seus ovos – contavam eles- eram enormes; fruto de um verdadeiro milagre de nossa Senhora das Neves (Padroeira da Aldeia).
Ora isso gerou em nós curiosidade, a nossa inocência nos tapava a vista, por isso, só havia um caminho a seguir!!! Pular a cerca e mandar vir com as galinhas, de forma que o proprietário não desse pela nossa presença, nem dos ovos que iriam desaparecer...
Quando lá dentro, e de olho no galo, tomei nota das suas pisadas, eles são agressivos, tão agressivos que não servem nem para acasalar. São umas bestas, de bico fino e vermelho que se arregalam de acordar as pessoas de manha cedo. Os ovos se encontravam num ninho de palha, como se nele dormissem à espera da hora de chocarem ou de acabarem por cair na frigideira do padre - eram três, para espanto nosso, eram amarelos e de tamanho normal. Afinal não havia mistério, as galinhas eram quatro, castanhas com pintas brancas nas costas, e de especial nada tinham, apenas sua magreza se destacava. Pegamos nos ovos, e os levamos no bolso, coisa de criança, onde já se viu levar ovos no bolso, se ao menos fossem separados, agora juntos... o que aconteceu a seguir vocês já sabem, fiquei encharcado de gema de ovo. Nossa idéia era de levar os ovos aos crentes e mostrar-lhes que tudo que eles disseram era mentira, mas nem isso conseguimos. Apenas desvendamos o mistério, que não era mais do que uma forma de os católicos enganarem as crianças de que a fé nos pode salvar e de que milagres existem. Desde então que minhas dúvidas sobre a igreja católica aumentaram, comecei a fazer birra para ir à missa, mas de nada me adiantava, meu avô era sacristão da igreja, meus pais católicos por natureza, logo, eu era forçado a adorar algo com o qual me tinha desiludido. Mentir para crianças não é de todo o caminho ideal para que a fé se espalhe, no meu caso, e devido a minha traquinice, acabei por descobrir que os milagres de ovos só existiam na mente de fanáticos, gente audaciosa, que tudo fazem para ganhar fiéis. Com o passar dos anos fui me tornando homem, até que fiz 18 anos, e desde daí que nunca mais pus os pés na igreja. Nunca mais me confessei, não tenho que confessar meus pecados para uma pessoa que tem mais do que eu. Que o diga a filha da empregada, cujo pai é nosso padre. Mas ninguém sabe! É segredo, o segredo.
A foto permanecia na minha mão direita, as cores ainda estão vivas, os olhares das duas crianças eram ternos e dóceis, e na parte de trás estava escrito: Amor de mãe. Eu te amo meu filho – assinado Tina (Diminutivo de Leontina). As lagrimas vieram-me aos olhos, não pude passar indiferente a tamanho gesto de amor, e de repente vejo meu amigo de longa data me dando para a mão esquerda um lenço, para poder afagar as lágrimas e recordar o que devia ser recordado há muito mais tempo. Entreguei o lenço à foto, e a foto entrou no baú com uma subtileza de quem não queria entrar. Mal chegou ao fundo do baú, disse um ai... mudo, que eu não ouvi mas pressenti. O baú se fechou, minhas lágrimas secaram, e de repente os pássaros começaram a cantar junto ao “janeluco” que dava para o sótão. Cantavam com o sentimento de dever cumprido. Mais uma janela que se fechou na minha vida, e uma porta que se abriu na minha alma.
Assinado Jonny, com amor de filho.