AFLIÇÃO

Julieta sai de casa, abre o portão e sobe a rua afastando-se de sua casa. Chega à esquina e vira à direita. Está andando rápido; bufando; segurando sobre o cotovelo direito a bolsa, que vem bem presa junto aos músculos retesados. Está de óculos escuros e não olha para os lados em nenhum momento. Dispara em linha reta, apenas desviando dos postes e dos demais pedestres que insistem em cruzar seu caminho. Julieta está cansada. Está cansada do marido, dos filhos, do cachorro, da cunhada, do café da manhã, do almoço, do jantar, da louça, da poeira, do aluguel, da vassoura, do pano de chão, de prato, do carro velho, do aniversário obrigatório do afilhado, da novela das oito, do pastor do Canal 7, do pão muxibento da panificadora da esquina, do buraco no asfalto em frente à sua casa, da fossa em seu quintal, das violetas que não dão flores, de regar as violetas diariamente, das chuvas de verão, do eterno livro do Pequeno Príncipe sobre o criado mudo, do Latino tocando na rádio, do engarrafamento das 18 horas, da espera pelo verão, do chefe, de Eunice, da moça do cafezinho, do banheiro fedido do 4º andar, do elevador da década de 70 que range sem parar, da professora filha-da-puta do mestrado, do computador que só trava, do Orkut, do Facebook, dos joguinhos babacas de ambos, da viagem que nunca vem, da conta de luz, água, telefone, IPTU, IPVA, seguro obrigatório, dos livros do colégio das crianças, da ração do cachorro, da enxaqueca, da vizinha fofoqueira, das crianças jogando bola na rua, da Mega Sena que nunca acerta, do apagão, do mensalão, da corrupção, dos funcionários fantasmas, dos políticos, da Justiça, do Presidente, do Governador, do Prefeito e todos os seus vereadores, dos discursos, das cartas de amor que se acabaram há dez anos, do chocolate diário, do “Boa Noite” do Willian Bonner, do irmão bem-sucedido, do laptop que nunca terá, do IPod que nunca terá, do carro que nuca terá, da tevê LCD que nunca terá, do sobrado que nunca terá, da canção que nunca fará, dos gritos, das brigas, das indiferenças, dos afagos técnicos, e da maldita mulher que pára à sua frente – no meio da calçada – indo pra lá e pra cá a impedir-lhe a passagem. Julieta está cansada. Desvencilha-se da mulher, pára à beira da rua, sobre o meio-fio, e prepara-se para atravessá-la. Vem um carro. Julieta o observa através dos óculos escuros e, quando ele está bem próximo, ela grita. E grita, e grita, e grita sem parar. O mais alto e loucamente que pode. Grita tanto e sem tomar fôlego que chega a curvar-se, apoiando-se nos joelhos para não cair. Grita até faltar-lhe voz, até que a garganta lhe doa tanto a ponto de se fechar, seca e inchada. Escorrem lágrimas pelo rosto de Julieta. Ela, então, saliva, lubrifica a boca, enxuga o rosto, fica ereta novamente, toma fôlego e atravessa a rua.