Estrada
Direto nela, na estrada principal. Já olhei todos os prognósticos sobre a quantidade de veículos, quando devo chegar. Levar toda a família para a casa da sogra, na praia. Calma, não vou falar sobre ela, a sogra, uma estrada linda e sempre aparecida. Afinal, dessa vez, nós é que vamos aparecer na sua estrada e ficar dentro da sua casa. Confortável, ela sempre amável e o meu sogro sempre dizendo sim. Para os netos, para a filha e para a esposa. Para mim, uma cervejinha e pronto. E o seu time vai perder esse ano. Pura provocação. Mas chegamos e estamos agora na praia, segunda cerveja. Ótimo. A estrada, ah, sim, a estrada. Esqueci de contar. Detalhes novos nela. E bastante preocupantes para as funerárias. Correto. Escrevi funerárias. Prejuízo quase total. Os mesmos clientes de sempre, você sabe. Ataque cardíaco, algum desafeto com arma de fogo, alguns vizinhos briguentos e compraram as armas de traficantes, outros, como, por exemplo, acidente de trânsito, gente mal humorada que briga e senta a cacetada nos outros com objetos pontiagudos. Uma grande tristeza para as famílias. A minha, agora, na praia, aproveitei e estou escrevendo já que eles estão se divertindo. Ah, sim, de novo, esqueci, a estrada. Estou um pouco disperso hoje, escrevendo sobre o contrário do motivo que me deixou encafifado com esse fim de semana, feriado prolongado e no dizer das lindas comunicadoras da televisão e o frio da internet e os relatórios sobre a estrada, sim, ela mesma, que vim de São Paulo para Santos. Ótima. O governador tem mesmo razão, está melhor ainda. Um verdadeiro escândalo. Nenhum acidente. Pode acreditar verdadeiro. Eu sei, vim por ela na quinta feira à noite. Não contei? Pois é, vou sim. Foi aprovada uma nova lei. Sei, vão reclamar, as leis existem e não são obedecidas. Mas nesse fim de semana, melhor, noite de quinta-feira, estou voltando, vá avisei, agora estou na sexta-feira, escrevendo na praia com uma cervejinha na mão, um bloco de notas e depois digito para você ler. Voltando. Estrada. Isso mesmo. Aqui vai o relato incrível de uma lei que foi obedecida e deu mais do que certo. Nenhum acidente em nenhuma estrada, federal, estadual, bem, as municipais não estavam incluídas. Nessa as funerárias continuaram faturando o seu produto principal. Gente. Os meus, veja agora, os meus dois filhos gêmeos e a minha menina brincando. Ela senta no colo da avó, materna, eu avisei antes, ri, brinca com a areia molhada que o vovô, meu sogro, foi buscar água salgada e deixou na poça pequena que ela ajudou a cavar. E os dois jogando bola. Eles têm com diferença de dez minutos, onze anos de idade. O mais velho é mais velho dez minutos. Espera a Estrada. Que coisa, estou mesmo disperso. É que ficou novidade pegar, viajar e chegar. Tudo por causa da lei, de uma hora para outra, o governador fez prevalecer. A polícia federal estadual com ordem direta do senhor presidente da república. Deu certo. Ninguém. Nenhuma ocorrência no país todo. Saiu hoje de manhã, eu li no jornal e na internet, antes de dizerem que eu era obrigado a ir à praia. Não gosto muito. Queimo fácil. Não importa. Então, voltando para a estrada, essa do qual cheguei e confirmei com as outras. Nada de nada, gente, nenhum acidente. E agora vou lhes confirmar o porquê desse exagero de facilidade na manutenção da Vida. A minha, dos meus filhos devidamente agarrados em cintos de segurança e a esposa sorrindo para mim e para eles no banco de trás, cantando e dizendo que iriam ganhar presentes dos avôs. Interesseiras como todas as crianças atualmente. Consumistas. Ah, a estrada. Que coisa não é. Bem, foi instituída a condição de comboio. Isso mesmo. Comboio. Pegamos o das vinte horas. Chegamos certinho e na nossa frente, já parados pela polícia, iniciar a saída das dezenove horas. Marcada certinha e chegando provavelmente as dezenove e quarenta e cinco minutos. Vi à distância, estava na segunda fila e os documentos liberados para apresentação. Fui premiado ou sorteado aleatoriamente como queira, entreguei para o guarda, simpático, disse chamar tenente Ramos, só Ramos, o tenente ficou por minha conta de excesso de amabilidades. Os documentos em ordem, pneus novos, lanterna dianteira e traseira nos conformes e acompanhando os colegas deles vendo os que chegavam e iriam me acompanhar na viagem. Os outros veículos. Caminhões, automóveis, ônibus de turismo e de viagens normais. Todos certinhos, comportados, os premiados entregando os seus documentos e facilitando a vida de todos. Só viaja, agora, a partir da nova lei quem estiver com os documentos em dia. Multa, não precisa. Todo mundo sabe que pode ser vistoriado, então, tudo em ordem. Estou repetitivo. Bem, iniciou a viagem exatamente nesse horário. Na frente, gastando dinheiro de gasolina do nosso bolso, da população que paga impostos dois garbosos automóveis com as suas luzes vermelhas girando e mostrando o quanto podemos pisar no acelerador. Exatos noventa quilômetros por hora. Estou dizendo, velocidade máxima. Então, o que aconteceu de interesse na viagem. Nada, a não ser a cantoria dos meus filhos no banco traseiro, minha esposa também, feliz, e até eles todos, atrás, os meus garotos e minha lindinha dando adeus a outros de igual interesse em se divertir. E foi assim, uma viagem de quarenta e oito minutos na estrada. Oitenta e noventa quilômetros por hora, conforme ia aliviando o espaço. Deu tudo certo, acreditem. Uma pena para as funerárias, nada de mortes nessa quinta-feira à noite. Sexta-feira, sábado e domingo, incrível, vai ser igual. O estado não vai precisar internar duzentos e oitenta e dois feridos, diverso machucaduras, na média pessoal, não fiquei contando acidentes anteriores, tenham paciência. Ninguém agüenta estatísticas. E nada de serviço de funerárias. O pessoal do resgate dormiu. Vi dois descansando e dei adeus. Sequer retribuíram. Bem, estão cansados. Ficaram acordados, provavelmente, com insônia antecipando o fim de semana com a possibilidade de mais ou menos, seiscentos mortos. Famílias inteiras. Não na viagem para Santos, não senhor. Agora mais controlada. Mas estou escrevendo sobre a estatística, infelizmente, do Brasil. E mortos, bastante, famílias inteiras. A minha, em Santos, na praia. Brincando. E o meu sogro me ofereceu outra latinha de cerveja. Não, chega. Vou me dirigir até o apartamento de frente para a praia e não quero precisar de ajuda. Você sabe bem se dirigir não beba. Se beber não se apóie. O sogro tem oitenta anos e é ele que precisa. Os gêmeos, nessa hora, se encarregam. Ah, voltando para a estrada. Como disse, nada de sangue, suor e cerveja. Só ela no final, quando terminou a viagem. Não é bom mesmo? E o prejuízo das funerárias pode ser distribuído pela população viva e com ávido poder de compra. Nada de choro nem de vela nos cemitérios. Dar uma folga para os coveiros e as finanças públicas. O comboio. Simples, direto, rápido também. Um bom lema seria – Vá devagar para chegar depressa – foi o que fiz. E a lei se tornou célebre, apesar de simples. E multas que deveriam chegar para facilitar a vida do cidadão, bem, essas foram trocadas por falta de acidentes. As seguradoras agradecem e as famílias que ficariam enlutadas também. E viva a Vida, é o que dizem. Basta um comboio. Os apressadinhos? Está escutando o arranque do motor e o ran ran ran deles?. Bem. Ficam na segunda fila e esperam eu chegar. Noventa quilômetros por hora. São Paulo a Santos em menos de uma hora. Uma delícia. No Brasil imenso também, acredito. Saldo das estradas? A paisagem maravilhosa.