Tempos estranhos
TEMPOS ESTRANHOS
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 07.04.2010)
Estranhos são estes tempos em que vivemos. A Humanidade gastou milênios para se impor padrões de educação, de relação com os semelhantes e com os negócios do planeta (chamados habitualmente de meio ambiente) que pudessem ser classificados como minimamente civilizados. Os impulsos naturais, espontâneos e emocionais, precisaram e precisavam ser contidos em nome da tolerância e do convívio com o alheio, com o diferente, com o contrário.
Não foi fácil, e milênios foi um tempo insuficiente, escasso demais para a monumental tarefa de fazer o ser humano comportar-se como gente. O jeito foi inventar a hipocrisia para dar conta da tarefa: eu disfarço que sou gentil e cavalheiro, vocês fingem acreditar nos meus propósitos e atitudes, e todos nós, satisfeitos enfim, nos entregamos à maledicência, à conspiração e à satisfação dos nossos instinto primevos.
Mais recentemente, bem mais recentemente nessa longa linha do tempo, fundou-se o politicamente correto como instituição predominante na regência dos contatos diretos ou indiretos entre as pessoas, como código de conduta e de comunicação cujas violações são punidas com o máximo rigor, porém sem violência nem constrangimentos: o desprezo complacente da cara feia é imediatamente dirigido, endereçado aos contraventores até mesmo pelo espelho que eles têm em casa: é bastante eles saberem que agiram de forma condenavelmente incorreta.
Assim, por exemplo, o racismo é execrado, mas chamar alguém pela cor da pele - negro, por exemplo - pode ser altamente ofensivo e justificar um belo processo judicial por danos morais incalculáveis.
Com o advento da prática extensiva do politicamente correto, desapareceram da face da Terra todos os aleijados e retardados mentais, a despeito de a nossa civilização sobre rodas mutilar todo dia mais do que as maiores e mais sangrentas batalhas, apesar de a extremada competitividade em busca desmesurada pelo dinheiro e pelo poder alijar e alienar multidões, marginalizando todo e qualquer indivíduo que não compactuar com as regras e pôr-se a questioná-las: não há tempo a perder com casos individuais, pois o mundo não para de girar. Portanto: enquadrem-se!
Às vezes (quantas vezes, mesmo?), de tanto buscar o verniz da cultura e da educação, e de tanto nos cobrir com ele, acabamos por fabricar máscaras, estranhas máscaras que nos escondam do mundo e dos homens.
(Amilcar Neves é escritor com sete livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 31 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior)