OS MIL E UM EREMITAS
Os mil e um eremitas
Li recentemente na internet (e por paradoxal que possa parecer uso-a para pesquisar sobre eremitas) uma pesquisa de uma determinada universidade que catalogou na atualidade mais de mil eremitas vivos e atuantes. Como a pesquisa citava-os apenas na Europa e América do Norte e eu sou brasileiro, achei por bem dar título a este artigo de “mil e um”, mas sei que existem ao menos outros quatro no Brasil.
O que leva essa gente a recolher-se e virar eremitas? Loucura? Esquizofrenia? Paranóia? Ou outras formas de fuga? A resposta é não. Em geral não. Contando comigo e outros que conheci pessoalmente o eremitismo é uma tendência perfeitamente aceita e como se vê, em voga.
Vamos entrar no campo do talvez. Talvez isso, talvez aquilo – a pesquisa aponta várias razões para que esses homens e mulheres, solteiros, divorciados, viúvos e até casados optem pela solidão. Além do fato de gostar dela em si mesma, penso que estão querendo renovar o sentimento religioso, extrair-se do senso comum que concebem religiosos apenas os monges, frades e freiras, vivendo unidos (ou nem tanto assim) nos mosteiros e conventos.
Penso que estas pessoas estejam cansadas da mesmice, dos velhos arquétipos religiosos, da falta de pietismo, da hipocrisia reinante em muitas comunidades e, sobretudo, pelo fato de levarem Deus muito a sério é que desejam um “acordo pessoal” uma espécie de “nova aliança” entre eles e Deus – sem intermediários ou métodos pré-estabelecidos.
A falar por mim mesmo, sou beneditino, monge, com larga experiência de vida em mosteiros, o suficiente para dizer que estou absolutamente feliz vivendo “comigo mesmo”. Claro, que alguns de nós eremitas, seguimos uma Regra de Vida, uma espiritualidade, somos obedientes a um bispo que nos acolheu em nome da Igreja universal – mas a vida do eremita ele mesmo faz.
Ele sabe se deve levantar as quatro da manhã, se vai passar a noite em vigília ou se num dia de chuva, vai orar olhando a vidraça molhada. Não por poesia simplesmente, mas porque os pequenos detalhes do dia a dia são realmente significativos.
Talvez eu possa assustar a alguns, mas cansamos dos padres e monges de profissão. Quero dizer, que transformam a ida ao côro da Igreja em atos exteriores, tal qual à hora de bater o ponto, quando se entra ou sai de uma fábrica.
Teresa de Ávila que é uma santa e doutora da Igreja católica dizia que um mosteiro com mulheres demais juntas, doze, se não me engano, seria um grande problema. E hoje vejo que ela tinha razão. Como se pode numa comunidade numerosa, saber o grau de oração de cada um? Deduzir que todos oram ao mesmo tempo, em uníssono de voz e coração? Muitos mosteiros tradicionais, portanto, estão em verdadeiro declínio espiritual e quando há aumento de vocações, isso não supõe nos dias de hoje, que haja qualidade e santidade de vida, mas apenas números.
Comunidades pequenas cuidam-se melhor, administram-se melhor, tendem a progredir mais na vida comum. O que diremos então de um monge ou monja? Ele mesmo enfrentará seus fantasmas interiores e chegará à lucidez muito mais rapidamente, porque simplesmente não cria um personagem para si, mas vive a realidade nua e crua e se, que não aconteça, ele criar tal ilusão, logo verá que a sua solidão com Deus funciona como um espelho interior – onde ele não se pode enganar.
Na vida do eremita não há fraudes. Há tentações, mas há também profundo reconhecimento de seus limites humanos.
Outro ponto importante é a questão da Igreja reunida em assembléia. Muitos cristãos vão dominicalmente à sua paróquia como um ato exterior. (Um desastre!) Tal qual, bater o ponto que eu disse acima. São cultos exteriores apenas. Chego a dizer que alguns (me perdoem a franqueza) vão como se fossem ao cinema. Gente que entra no cinema com o filme começado – e depois emenda a outra sessão para pegar o pedaço que perdeu. Assim entram e saem da igreja, apenas psicologicamente cientes de que cumpriram um preceito, mas não oraram exatamente. Não tiveram um encontro pessoal com Deus.
Também se torna um terror, as palmas, cantorias, baterias, guitarras, os projetores de imagens e uma parafernália que se usa em nome da fé. O culto religioso pode correr o risco de se tornar encenação. Pois retiraram o silêncio das igrejas e mesmo no tempo em que, se tinha algum, depois da Ceia do Senhor, agora um jovem entabula um arranjo de guitarra neste momento, com cantorias. Mesmo na hora em que se dizia “Kyrie eléison” com verdadeiro sentimento por nossos pecados cometidos, hoje, pede-se perdão cantando. Quando um servo a seu Senhor pediria cantando seu perdão? A compunção está perdida nas nossas almas.
Os que desejam ser eremitas ficam cansados e preferem eles mesmos cultuar à Deus “em espírito e verdade”. Não estou com isso desmerecendo o valor da igreja unida em comunidade, na partilha de dons, de experiências e testemunhos de fé, mas no caso dos eremitas torna-se um fardo maior, e por isso eles optaram por seu deserto. (Deserto como estado de alma, não lugar geográfico).
Estariam estes cristãos apontando para uma mudança de paradigma de fé, para uma igreja interior, uma igreja doméstica? Pode ser.
Talvez o número de mil pessoas numa cidade como Nova York não seja algo significativo, mas não podemos ver apenas como coincidência que tais pessoas tenham tido quase ao mesmo tempo esta solução religiosa para si. E detalhe: uma não sabia da escolha da outra quando escolheram a mesma coisa. O movimento eremítico aconteceu silenciosamente, sob a ação do Espírito Santo.
Outro dado interessante: a maioria dos eremitas são pessoas de uma faixa etária madura, depois dos trinta, antes dos sessenta. Estão sob todos os aspectos “resolvidos” na vida. E acho que é essa a melhor idade para encontrar-se com Deus. Já criaram filhos, tiveram maridos, esposas, trabalharam, viajaram, sofreram, em relações amorosas delicadas e agora podem descansar no Senhor. Escolhendo, entre Marta e Maria, a melhor parte.
Aqueles e aquelas que são presbíteros e presbíteras (no caso dos anglicanos, por exemplo) ainda unem a essa vida de solidão a celebração da Eucaristia. Realizam a oração da igreja, aquilo que Jesus mandou que se fizesse em memória D´Ele.
Mas alguém perguntará: missas para quem? Culto para quem?
Precisamos restaurar o valor espiritual da Eucaristia e sua validade.
Nas igrejas, a preocupação de louvar, cantar, pregar, mostrar... Com às vezes, uma boa carga de proselitismo religioso! São os crentes que trazem os crentes, a fé vem pelos ouvidos... Apregoam. Ou é Cristo o Senhor da Igreja que faz conforme Lhe apraz? Precisamos deixar Deus agir livremente.
Andamos esquecidos de que no silêncio Deus age. Na Igreja o Espírito Santo atua. Portanto o fato de celebrar a eucaristia “em privado” não tira em absoluto seu mérito, antes o multiplica.
Fico absolutamente feliz que sejamos mil eremitas. Ou melhor, mil e uns... Será que estou sendo proselitista puxando a brasa para a minha sardinha? Desejando em vez de mil, talvez dois mil?
Não. O eremitismo e a vida monástica não são próprios para as multidões. Quando Cluny foi um mosteiro numerosíssimo veio à derrocada. Deus continua chamando, como chamou, em Jesus, os doze primeiros. Ele chama um a um, olhando nos olhos, conhecendo o coração e nossos pecados.
O que posso fazer é orar para que o Senhor da Igreja continue suscitando novos e novas eremitas, em pleno século XXI e que não nos falte em Sua assistência, “até os confins do mundo”.
Escrevam-me aqueles e aquelas que desejarem uma orientação segura em como se tornar um (a) eremita beneditino (a) anglicano (a). Não vivendo comigo, ou em comunidade, mas fazendo de sua própria casa um templo para Jesus.
Revdo. Emmanuel Maria Maia+, OSB
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