Louca por crenças
Ficção
Era espírita e quando ia ao lançamento de algum livro nunca pedia autografo. Colocava o livro na cabeceira antes de dormir e no outro dia o livro estava em cima da mesa-de-cabeceira completamente autografado. O autor vindo das trevas durante a noite rabiscava a dedicatória. Poderia deixar os números da loto, mas em matéria de números o assunto era outro. Respeito muito o espiritismo como caligrafia. Poderia escrever diversos livros como o nome de espírito, mas Balzac é célebre demais para empresar a sua melhor alma única.
Há poucos dias recebi uma alma desgarrada lá em casa. Dessas que parecia ter partido e voltado muitas vezes graças ao estado psíquico em que estava vivendo. Um trapo mental metido em todas as ilusões.
O que você está fazendo aqui neste estado? Ela respondeu. Acabo de chegar do cinema. Fui assistir ao grandioso filme do Xavier. E você? Sempre consistente? Bem... Prefiro economizar o bilhete. Um filme desses a gente coloca os pés na bacia de água quente, apaga a luz e começa a ver o que está ocorrendo dentro da sala de projeção, grátis em casa. Por intermédio... Como você mistura tudo! Reclamou bestificada. Logo ela que pertencia a todos os credos e freqüentava todos os terreiros com grande naturalidade. Achava estranho mesmo era não ter religião. Gente assim na hora da hecatombe garante certa desvantagem. Deviam possuir pelo menos um patuá.
Tome cuidado com as crianças no reino da inocência! Exclamei. Enquanto ela procurava na minha estante um livro sobre o Papa e a Quimbanda. Estava escandalizada com as notícias de abuso de menores ligados ao mundo de Jesus. Ah! Lamentava! Que triste idéia teve esse apóstolo... Procurava lembrar... Como se chamava o primeiro apóstolo que se mandou do Oriente Médio para a Itália depois que os solados de Espártaco foram crucificados? Disse-lhe: “Paulo”, sabendo que Madalena misturava tudo, naquela cabecinha de ayahuasca e chiclete tutti-frutti. Talvez pudesse ser o Romário. Romaria. Romário. O mundo espiritual é o melhor dos mundos, suspirou com entusiasmo, mas no campo social será sempre útil um juiz ateu para resolver tantos conflitos como nos jogos de futebol. Observe: Se o cara caminhou sobre as águas que diferença faz negar o boitatá ou o Saci?
Ela sorriu, estava mesmo um trapo. Sua vida beirando a insanidade com tanta expressão religiosa. Cada vez que ia ao psicanalista levava um santo novo e havia iniciado um novo relacionamento com um cara maluco pelas tendências tibetanas. Andava com os pés no chão e um sino no pescoço. Tinham acumulado recursos para arrastar mais gente até o novo filme do Chico ou seria Xixo? Levariam as crianças da favela com eles... Para longe das drogas e distante dos perigos espirituais. Estariam a salvo no cinema porque há sempre perigo dentro desses restos de templos medievais que habitam o fim do estado gótico, sorriu. Um sobrinho havia lhe indagado sobre o que iam fazer no cinema. Respondeu: Ora, vamos assistir um cara que foi um verdadeiro tubo de almas e imagens, bom de caligrafia, além de campeão de bilheteria abstrata. Ele olhou para ela e comentou: A tia está sofrendo de tripla personalidade misturada com dupla nacionalidade. Saiu do cinema reclamando que o filme não ocorria em tempo real na era virtual.
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Chegou em casa oferecendo: veja quem você não foi na vida passada. Estava ficando sensata.
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Qualquer semelhança virtual com a realidade é mera coincidência.