Um Exemplo de Encher os Olhos



Gatos são animais elegantes, independentes, inteligentes e belos. Apesar de todos esses adjetivos, minha antipatia por eles surgiu quando eu ainda era criança e minha avó cuidava de uns três ou quatro. Eles não eram dela e ela nunca foi deles. Morando sozinha, ela os permitia ficar por ali, dava-lhes comida, abrigo e água. Mas eles iam e voltavam quando queriam, eram ariscos, quase selvagens. Quando chegávamos de Brasília para passar as férias com ela, queríamos pegá-los no colo, acarinhar-lhes os pelos macios, enchê-los de carinhos e eles nos agradeciam com unhadas e mordidas. Obviamente não entendíamos o quanto poderia ser assustador para eles ter, de repente, a casa invadida por seis agitadas crianças. Nenhum de nós era muito Felícia*, mas falar com eles já era muito mais do que a vovó fazia.
Logo compreendi que era melhor respeitar-lhes os espaços e deixá-los quietos. E também, de pirraça, não lhes dava a menor bola, quando eles, interesseiros, vinham miando manhosos, esfregar-se em nossas pernas pedindo comida.
Meu desencanto com os felinos domésticos porém, nunca chegou às beiras do rancor. Tenho-lhes respeito, admiro suas qualidades e nunca lhes quis mal. Lamento ver um deles sofrendo, tanto quanto lamento ver sofrer um adorável cachorro. E é aqui que começa a minha história. Anteontem, fiz um anúncio no "Festa no Céu". Esta é a sessão do site da ProAnima onde são informadas as mortes dos animais que estão ou já estiveram sob os cuidados da instituição e sempre me dói um pouco atualizá-la. Sim, sim... a morte é a única certeza que temos, mas ainda não sou capaz de vê-la sem alguma tristeza.
A gatinha cuja partida eu anunciei foi resgatada das ruas com FIV (Aids Felina) e câncer e adotada por uma moça chamada Carol há alguns meses. E por que alguém adotaria um animal nessas condições? Quem respondeu foi a própria Carol, em uma cartinha que publicamos no site e que dizia mais ou menos assim: "Para acolher quem precisa. Se tudo é parte da Criação, então todo ser vivo merece ser acolhido e tem direito de ser amado, bem tratado e bem cuidado. " Ela dizia também, em seu texto emocionado, que para se acolher um animal com necessidades especiais é preciso muito amor, respeito profundo pela vida, planejamento orçamentário e o pensamento focado em oferecer-lhe a melhor qualidade de vida possível, até o fim.
De forma muito doce e até um pouco divertida, ela prossegue enumerando tudo o que a experiência com um serzinho tão frágil lhe ensinou: simplicidade, humildade, caridade, amor, respeito pela vontade alheia: "eu não engulo comprimido e ponto final", responsabilidade: "você é a mãe, portanto me defenda do grandão que quer me furar e me abrir", gratidão pela saúde, pela casa, pela companhia, pela água e pelo alimento, "la vida es dura, pero no hay que perder la ternura", resignação pelo fim das esperanças e a certeza de ter feito tudo o que esteve a seu alcance.
Ela encerra com um trecho do Livro da Esperança, de Chico Xavier: "Deus que nos auxilia sempre nos permite possuir, para que aprendamos também a auxiliar (...); nas fronteiras da morte, somos despojados de todas as ilusões e se algo nos fica será simplesmente a estreita coleção dos benefícios que houvermos feito, assinalados em nosso nome pelo conforto, ainda mesmo ligeiro e desconhecido, daqueles que nos deram oportunidade a singelos ensaios de elevação."
Terminei de ler a cartinha, sequei as muitas lágrimas que cismavam em turvar-me os olhos e cumpri meu dever de publicá-la.
Não foram essas lágrimas que quis partilhar com meus leitores, embora saiba que aqueles que me lerem e amarem os animais como eu inevitavelmente as verterão. O que me motivou foi mesmo a beleza e importância da mensagem tão linda e abnegada de uma pessoa que se propôs a adotar um animal doente e dar-lhe o máximo possível de conforto nos instantes finais de sua passagem por aqui.
Se todos fossem como Carol, não resta dúvida, nosso mundo seria muito melhor.

* Felícia: personagem Looney Tunes um tanto sádica em seu amor pelos animaizinhos.


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Veja o anúncio da gatinha Xuxu:
http://www.proanima.org.br/adote-um-animal/nossos-protegidos-1/xuxu/