Dormindo mais um pouco
Naquele dia as coisas pareciam caminhar de maneira diferente, de certa forma é como se tivessem ganhado vida própria e possuíssem agora suas próprias pernas. Desde o momento em que acordara havia percebido com riqueza de detalhes. Não que as pessoas estivessem diferentes com ele, ou que houvesse algo de novo na mesa do café. Isso continuava igual, como uma rotina sagrada. Mas, quando se olhou em frente ao espelho pode confirmar essa sensação tão estranha. Seu rosto continuava o mesmo, mas era como se fosse agora visto por outra pessoa. O que fazer numa situação como essa? Se esboçasse alguma reação ou comentasse algo com os demais, certamente o achariam louco, talvez em função de alguma perturbação no trabalho. Já podia até ouvir os comentários, os médicos, remédios. Não, melhor não. Aqui dentro ninguém podia ouvir, sua mente era seu diário secreto e inviolável. Assim, agiu de forma natural, do modo que todos esperavam. O jornal foi aberto, como todos os dias. No entanto, dessa vez não foi lido. O café foi tomado aos poucos na velha xícara, presente de casamento. O gosto era outro. Como podia ser uma coisa dessas? Quando disse que iria trabalhar sentiu um certo alívio, poderia estar só até o trabalho, pensar no porquê de tudo isso. Mas, ao sair de casa, ouviu os latidos do cachorro, esse sim havia notado algo errado. Por sorte todos estavam tão ocupados com suas rotinas que nem se deram conta. E foi assim que andou até o ponto de ônibus, olhando para todas que por ele passavam, como se aquela não fosse sua vida. Onde estava afinal de contas? Será que passara os últimos 50 anos de sua vida dormindo? O ônibus chegou, estendeu o braço como se fizesse isso pela primeira vez. Deu sorte, alguém se levantou e ele conseguiu sentar. Com a cabeça encostada na janela, decidiu como iria resolver tudo isso: dormiria mais um pouco, o percurso era longo e teria mais de uma hora para organizar sua vida.