A anarquia do sanduíche

Em um quarto escuro onde nem as primeiras oras de sol dão sua graça, um telefone toca. Um telefone não, um celular. Este que não somente toca, mas vibra, pisca, dança...Como se interpretasse a gravidade do fato a ser anunciado.

Sai um 'alô' ecoando zonzo do quarto escuro. Mas um 'alô' tímido, que não queria sair, não queria ouvir outro em resposta... Ainda assim:

Oi, Souza! Você não vai acreditar! Sanduíches. Todos sanduíches...Ligue a TV e corra para o Pombo.

Nem questiono. A última vez que o Humberto me ligou assim foi quando a mulher fugiu para o Peru com um guatemalteco. Não tem nada a ver com o jornal, mas foi a primeira coisa que me veio na cabeça! O Pombo da Manhã. Jornal com mais de 30 anos de distorção e oligopólio na cidade de Água das Cucuias. Assumo que pelo menos 18 destes estão em minhas costas.

Termino o banho e me troco enquanto ouço as notícias de longe. “Um lanche de lula, é o que a primeira dama encontrou ao seu lado na manhã deste domingo. Um fenômeno que muda para sempre a história da humanidade'! Ainda não fazia sentido pra mim. Continuei mudando de canal para fugir dos comerciais. “Vice-presidente: pão com patê de gorgonzola; presidente da Câmara dos Deputados: hambúrguer com queijo; presidente do Senado Federal : salame velho na baguete e presidente do Supremo Tribunal Federal: bauru com orégano! Está nas mãos de quem o nosso país”? Não era possível, estava ficando louco. Outra chamada: “E o diretor geral da Polícia Federal diz não querer assumir o controle do país. Com suas próprias palavras: 'amanhã eu posso ser o próximo, e não gosto da ideia de me tornar uma Mc lanche feliz!'

Não pode ser, eu não posso ter entendido isso, deve haver algum engano...De tanto ouvir sobre comida perdi a fome. O café desce quente e forte pela garganta. Pego minhas coisas e voo para o carro. Já vi que vou passar uns dias direto na redação. Da vez que o prefeito sumiu com a amante eu dormi na mesa durante 3 dias enquanto pesquisávamos. Imagine esta semana!

Ainda que com medo, resolvo ligar o rádio. Para não enlouquecer antes de chegar na sala do editor, ponho em música. “O povo não quer só comida, quer comida, diversão e arte”. Titãs, por que não? “A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte”. Antes que eu possa sorrir pela boa música tocando, ouço o maldito “Notícia Urgente”. “Saiba mais sobre o chamado 'mal do engravatado. Ao que parece, ao redor do mundo há notícias da mesma ocorrência”. Não é possível. É muita informação até para um jornalista como eu. Corpos se transformando em quê? Vou ligar pro Almeida, ele é o vereador mais velho do estado, mas deve servir. Fui assessor dele, quando terminei a faculdade. É o que sobra para jornalistas de cidadezinhas...

Até me preocuparia em dirigir com o celular em mãos, mas é domingo cedo...Enquanto nem se quer um marronzinho tomou seu café da manhã, já explodo em direção à notícia em meio ao nevoeiro. Cada passo, um furo.

Catso! O telefone só chama. É a terceira vez...vamos lá, Almeida!

Alô, por favor o vereador Almeida. - falo desesperado.

Sinto muito, rapaz. Meu Almeidinha virou presunto. - retorna uma voz baixa e triste.

Como assim? Ele morreu, dona Lurdes?

Não, virou pão com presunto...

Desliguei na hora. Não acredito. O maior evento do mundo e eu, responsável por cobri-lo, não quero acreditar.

Felizmente, moro em uma cidade pequena onde chego rápido em qualquer lugar. Em Águas, temos uma avenida principal, não muito extensa, onde temos os principais prédios da cidade. Prefeitura, Redação do Pombo, Delegacia, Biblioteca, Arquivo da cidade, Confeitaria e, claro, o bar do Bolinha! A última passeata que aconteceu, em 1963, contou com todos os 5 policiais do município. Como não havia outra força para impedi-la, a manifestação que exigia aumento salarial marchou do início ao fim da Av. Teotônio Bolão. A PM foi convocada, mas não encontrou a entrada certa da cidade. Foi parar em Águas de Lotucá. Eis que os 6 manifestantes (o filho do delegado faltou a aula para ficar ao lado do pai) percorreram a Bolão em 13 minutos. Não contentes, foram e voltaram mais três vezes, até que cansaram e sentaram no único bar da cidade, o bar do Bolinha.

Grande façanha, lembrada até hoje como a menor manifestação do estado. Mas parece que um acontecimento maior está para entrar na história de Água de Cucuias. E já me preocupo quando entro no começo da Av. Teotônio Bolão, nome do primeiro prefeito da cidade. Uma multidão em frente a prefeitura. Quando cheguei mais perto, tudo que pude ouvir foram gritos. “Enterrem-no em um pacote para viagem”, “façam uma estátua deste imenso sanduíche!”, “sirvam para o povo faminto que este prefeito maldito não alimentou!”. Após desistir de passar com o carro e deixá-lo por ali, cruzei todo aquele povo e entrei no Pombo da Manhã.

Descrever o caos que se instalou naquela redação era impossível. Todos tentando entender o que ocorreu. Todos tentavam falar o que sabiam. Era pior que a bolsa de valores. Felizmente Humberto, o editor, botou ordem no barraco. Subiu em minha mesa e disse, berrando:

ATENÇÃO! SILÊNCIO! Vamos repassar todas as informações!

Aos poucos, os colegas foram silenciando. Eis que ele continuou:

A situação é pior do que pensávamos. Os boatos sobre o Bolão Neto foram confirmados. O que aparenta ser um sanduíche de metro tomou lugar do que, até ontem, era o prefeito da cidade.

Ouvi dizer que era de rosbife com catupiri, correto? - Perguntou Augusto, colunista.

Não temos confirmação sobre isso. Sabemos apenas que o pão tem gergelim e encontramos alguns vestígios de picles.

Pronto. Bastou isso para voltarmos a feira de antes. O editor desistiu e entrou em sua sala. Fui atrás dele.

E ai, Betão? O que faremos?

Não sei, Souza. Estou preocupado. Por isso te chamei. Todos eles, em todos os cantos do mundo, se tornaram sanduíches. Com exceção de um premier japonês, que virou um par de rolinhos primavera...

Mas qual a preocupação? Se daremos foco pra cidade ou para o mundo na capa?

Não, muito além disso, meu amigo. O que será do mundo agora, sem ordem política? Todos estão com medo, mas logo sairão as ruas. Os policiais não darão conta. O mundo assiste desorientado. O que será da sociedade agora?

Notei que a preocupação dele ia além da pauta. Quando o Humberto perdeu as crianças pra mulher e o guatemalteco, ficou assim também. Vou tomar o controle para termos uma boa cobertura publicada amanhã.

Após uma rápida reunião de pauta, deixo com os repórteres a função de correr atrás das novidades. Começo a bolar a chamada da primeira página. Não precisei ir muito longe: A ANARQUIA DO SANDUÍCHE. Assim ficou conhecido este período. Nunca mais fomos os mesmos. Nunca mais comemos nada entre o pão...

*Crônica baseada na música 'E agora, Gregório?' da banda 'Móveis Coloniais de Acajú'