PRIMEIRA VIAGEM DE ÔNIBUS DEPOIS DE PARAPLÉGICA
Assistindo ao capítulo da novela VIVER A VIDA, que exibiu Luciana se transportando de önibus coletivo, vi-me na personagem e voltei no tempo.
Colei aqui excerto do meu livro PÁSSARO SEM ASAS, em que conto façanha similar.
Aproveito do ensejo para elogiar a feliz escolha do tema da novela, com tantos pormenores, alicerçados na realidade fática.
Significa um plantio, uma valoração que, com certeza, redenderá muitos frutos, melhorando a nossa inclusão social e estimulando o respeito.
PRIMEIRA VIAGEM DE ÔNIBUS DEPOIS DE PARAPLÉGICA
(Genaura Tormin)
Mesmo exercendo a titulância de uma delegacia contestadora e pesada, à noite eu lecionava. O magistério sempre me fascinou. Pesa-nos a responsabilidade pelo direcionamento eficaz, mas gratifica-nos pela obra que poderemos erigir.
Dessa vez, a matéria era Deontologia Policial, ciência do que é justo e conveniente que o policial faça. É a ética agindo sobre ele. Estabelece normas diretoras sob o signo da honestidade.
A ética estuda o caráter das pessoas, os usos e costumes com o estabelecimento de um conjunto de normas, regras e valores que se referem ao que a gente chama de: a conduta livre, a conduta justa, e a conduta feliz. Trata da liberdade, da responsabilidade e da felicidade no mundo das paixões, explica Marilena Chauí.
Apesar de não existir, na época, muita matéria didática sobre o assunto, os anos de vivência policial davam-me o passaporte para a cadeira. Minha força de expressão, a capacidade de fazer amigos e a identificação com a matéria majoravam-me a vontade de viver. O conhecimento que passava sempre centrado em exemplos vivos lapidava alguma faceta humana.
Lecionava para agentes, escrivães, escriturários, comissários e para os novos delegados que faziam o curso de formação. Nunca vira turma tão entusiasta como a desses delegandos. Egressos de seleção acurada apresentavam grandes conhecimentos jurídicos e distinguiam-se como pessoas excelentes no contexto social. Muitos tinham sido advogados militantes, assessores jurídicos ou desempenhado outros encargos de responsabilidade. Como exemplo, a Dra. Ivatônia, moça determinada, estudiosa, hoje, juíza no Distrito Federal, além de muitos outros que se destacam em cargos de direção, mandatos eletivos etc.
Felizmente, consegui realizar a tarefa a contento e fazer-me benquista entre eles. Parecia que força maior corroborava os meus ensinamentos.
Numa confraternização do curso, eis-me a caminho do Rio Araguaia, divisa de Goiás. O convite fora-me feito de maneira tão carinhosa que não poderia recusar. A amizade é o elo de estima entre os seres humanos; é ato de valoração e deve ser recíproco.
Dois ônibus conduziam os alunos delegandos. Era a primeira vez que me transportava de ônibus desde que ficara paraplégica. Meu espírito combativo, aventureiro, não hesitara em concorrer à normalidade dentro de um ônibus coletivo. Não existem problemas insolúveis. Entendo que não se deve pautar a vida pela espera sempre. É como esclarece José Ingenieros: “O amanhã é a mentira piedosa com que se iludem as vontades moribundas”. Com criatividade, tudo fica acessível, sem descalabro nem tristeza.
De bermuda, tênis e camiseta, num traje especificamente esportivo como os demais, lá estava eu, ocupando a quarta poltrona do ônibus, logo apelidado de “escolar”, junto ao Alfredo.
A viagem fora animada, como não poderia deixar de ser. O violão soltava sua lira na parte traseira do ônibus, regido pelo Dr. Rosival Reis. Músicas e mais músicas. Agüenta coração!
Na madrugada, cortávamos a cerração que se condensava no alto das colinas feito picos gelados, no desejo de penetrarmos às praias feiticeiras do grande Rio Araguaia. Queríamos sentir o cheiro agreste das matas impregnadas de segredos e lendas, ver o crepúsculo, as revoadas de pássaros, o sol bailando nas águas e a lua namorando a praia.
No trajeto, tomávamos cerveja em lata e até uma pinguinha de engenho por lá aparecera como “cachimbo da paz”.
Como não podia descer para ir ao banheiro, usava a latinha de cerveja como invólucro do mais precioso líquido — xixi. Alfredo havia-me passado uma sonda vesical (foley) para condicionar-me às oito horas de viagem. Assim estava tranqüila. De vez em quando introduzia meu fino pênis (a sonda) na lata e, disfarçadamente, resolvia o problema. Que felicidade! Como tinha a agradecer àquela minúscula latinha que dividia comigo a sua utilidade! A mangueirinha bege, de 20 cm de comprimento, servia de ponte para o jeitinho brasileiro.
Por que ficar triste por isso? Realmente era uma solução diferente, mas não deixava de ser uma solução, o que era mais importante. Quando a gente se aceita como é, tudo fica normal e simples. As dificuldades são creditadas como mérito nosso.
Com o sol avermelhado, qual bola de fogo mostrando a sua cara no horizonte, aos primeiros refegos do vento, colorindo a manhã de púrpura incandescente, chegamos ao Rio Araguaia. Tudo estava envolvente como as imagens que bailavam em nossas mentes. O prefeito de Aruanã, cidade às margens do rio, esperava-nos com foguetes e
churrasco.
Sujeito engraçado, o prefeito! Amável e brincalhão. Conseguira barracas do Exército e montara uma cidade ribeirinha para nós, numa das muitas ilhas do rio.
Logo, formamos um comitê na barraca do casal de delegandos Míriam e Manoel, legítimo representante da turma. Que casalzinho porreta, diziam todos.
Doutor Manoelzinho,
Da turma é a mascote,
Anima o pessoal,
Mas também tem pulso forte,
Ao lado de sua Mirinha,
Conquista de Sul a Norte.
O som do violão, o murmúrio da brisa na fronde das árvores, o remanso das águas e a cadência dos nossos cantores formavam um corolário de amor. Que paz, que transcendência, que convite ao infinito, tão diferente do cotidiano de um Delegado de Polícia em meio à turbulência de uma delegacia — pensava eu, ao tomar a última gota de cerveja do copo.
— Está bem servida, doutora? — perguntara o Dr. Eduardo.
— Estou me sentindo no melhor dia da vida! Sou pacifista e também passional! Gosto da singularidade da natureza. É o verdadeiro altar da existência. O cheiro de mato, o gorjeio dos pássaros, esse sol transverberado nas águas comovem-me, atiçam a minha sensibilidade. A alegria de vocês, a areia deslizando sob os meus pés, e ainda, a lira desse violão, acariciam minha alma, transportam-me ao céu. Se desencarnasse agora, partiria feliz. Vivo todos os momentos como se fosse o último. Mas este momento, este lugar, este ar bordado de aromas excedem os limites de uma mulher-amante. Arranje-me uma caneta e um pedaço de papel. Vou saudar ao Rio Araguaia:
Ao Rio Araguaia
Você, que corre sereno,
E a natureza floresce,
Formando ilhotas tão lindas,
Que a nossa alma enaltece,
Oh! Querido Araguaia,
Você parece uma prece!
Os nossos olhos vagueiam
Nas águas deste gigante,
Envolto em orquestras mil
E gorjeios delirantes
De revoadas de pássaros
E pôr-do-sol ofegante.
É a tela mais bonita
Feita pelo Criador,
Com desnudo matizado
Mesclado de aroma e cor,
Que se banha em suas águas
Num espetáculo de amor.
Oh! Meu querido Araguaia!
Pedaço de coração,
Regaço de leite e mel,
Berço de emoção,
Orgulho do chão goiano,
Versos de minha canção!
A turma eclodiu em palmas. Elogios dali, daqui e a vida passando da melhor maneira que podíamos aproveitá-la.
De vez em quando, fazia uma trovinha para ouriçá-los. Sempre em caráter brincalhão, aproveitando as frases soltas em conotações diferentes. Sempre havia um jeitinho para mexer com alguém, provar a esportiva...
O senhor Brasil, tio do Manoelzinho, assava o churrasco e jamais me esquecia. Lógico! Meus passos eram muito pesados na areia. As pernas de aço cavavam o solo, querendo enterrar-se nele. Não vencia distância em pleno areal. O meu direito de ir-e-vir estava comprometido. Só a minha imaginação sobrevoava todo o sacrário ecológico do Araguaia, admirando os fenômenos, a beleza da natureza selvagem desnudada em troncos curtidos, deixados abandonados à margem do remanso.
— Da próxima vez, vou mandar apensar rodas de buggy na minha cadeira.
Cantei uma música em castelhano (Sabor a mi). O Dr. Reni acompanhou-me ao violão. É também um saudosista. A turma gostou. Mas alguém gostou muito mais. Quem sabe, trouxera-lhe o passado, abrira-lhe a cicatriz. Era o “seu” Brasil, que deixou o espeto e deu-me um beijo com a afirmativa de que o fazia como se fosse à sua própria mãe.
Está aqui o Brasil,
Patriota de verdade,
Que guarda a simpatia,
E também a lealdade,
Fala o que é preciso,
Mas só dentro da verdade.
Até um beijo me deu
E de mamãe me chamou.
Eta, bichinho danado,
Que pode ser meu avô,
Pensou em não me ofender,
Mas no meu cordel dançou.