O Dia em Que Matei Minha Musa

Fazia sei lá quantos dias que eu não escrevia. Então, decidido a continuar o ofício masoquista de escritor amador – que dá pouco ou nenhum retorno ao trabalho árduo de pensar, repensar e duplipensar naquilo que se deve escrever –, sentei-me na cadeira, pronto para qualquer ideia que me viesse em mente.

Logo percebi que não havia nenhum assunto interessante sobre o qual abordar. Falar sobre o quê? Copa do mundo? Olimpíadas? Final do Big Brother? Relação Brasil-Irã? Nada daquilo me pareceu interessante o bastante, até porque todos já estavam falando sobre isso. O que eu poderia acrescentar?

Comecei a me irritar por tamanha improdutividade. Não que isso nunca tivesse me ocorrido antes – passo longos e ociosos períodos sem escrever uma palavra sequer, apenas olhando para o teto e cantarolando, pensando em não pensar e esperando qualquer inspiração divina me atingir como um raio e me obrigar a escrever –, mas eu nunca havia me sentido tão frustrado assim. Era como se o meu tão nobre ofício deixasse de ter importância, como se não-escrever fosse uma opção muito mais racional do que escrever para não ser lido.

“Problemas, Lucas?”, a minha musa me perguntou, aparecendo (finalmente!). Puxou uma cadeira e se sentou. Ela sempre aparece nesses momentos oportunos, e eu não nego a sua presença. Ela levantou as saias para cruzar as pernas, deixando à mostra aquele pequeno pedaço de erotismo que tanto me agradava. “Parece que as coisas não estão indo tão bem”, ela disse.

“Não estão, Musa”, eu cocei o ouvido com a ponta do lápis, um hábito nojento e mal educado, mas ainda assim extremamente confortador e agradável. “De novo aquela mesma merda de sempre. E eu aqui me perguntando se o problema sou eu ou se você simplesmente está se tornando frígida”.

“Autch”, ela disse, sorrindo. “Você sabe tão bem quanto eu que não precisa ser tão rude assim”.

“E você sabe tão bem quanto eu que não precisa ser tão ausente assim. Você nunca me deixou na mão durante tanto tempo, Musa. O que está acontecendo?”

“Acho que eu finalmente percebi que não vale a pena continuar por aqui, te dando tanto apoio”, ela sempre sorria, como uma psicopata que não se preocupa com o impacto de suas palavras ou ações. “Quando eu estou aqui, pronta para você, pronta para te dar tudo o que tenho, você simplesmente me ignora. Diz que está com preguiça, que a ideia não é tão boa assim, que vai dormir ao invés de pegar uma porra de um lápis e escrever o que eu estou ditando. Isso me cansa, Lucas”.

Ela dizia tudo isso sem alterar a voz. Exatamente do jeito que gosto, sendo levemente sutil e ao mesmo tempo extremamente rancorosa, usando todas as qualidades que lhe atribuí contra mim. Uma grandessíssima filha da puta, senhoras e senhores.

“E quando eu estou disposto a escrever qualquer coisa que você queira me dar”, eu disse, “você simplesmente some sem deixar nenhum vestígio ou telefone para contato. Convenhamos: você é tão filha da puta quanto eu”.

“Ninguém é perfeito. A diferença é que eu me esforço para ter ideias. Você simplesmente as usa.”

“E você adora quando alguém fala bem das suas ideias, sua narcisista”.

“Essa não sou eu, é você”.

“Você vai ou não vai me ajudar dessa vez? Estou realmente com vontade de escrever”.

Ela se levantou, passando as mãos pelos cabelos lisos e castanhos, me olhando com certa dúvida, como se ainda não estivesse cem por cento convencida de que eu estava falando a verdade. Foi até minhas costas, passando as mãos pelos meus ombros e desarrumando meus cabelos. Sussurrou no meu ouvido languidamente, como se estivesse à beira de um orgasmo.

“Não dessa vez. Eu gosto quando você está em agonia”.

“Não se esqueça de que você me pertence, não o contrário”, eu respondi no mesmo tom de voz baixo.

“Você precisa de mim, Lucas, não tente negar. Suas melhores histórias só existem por minha causa”.

“Você se supervaloriza demais, Musa. Pena que não é verdade”.

“Você me supervaloriza, não o contrário”.

“Estou começando a ficar extremamente irritado com você”.

“Ah, é? E o que você vai fazer a respeito?”

“Te mandar embora seria uma boa ideia”, eu disse, fechando o caderno. “Eu posso sobreviver sem você, Musa. Mas você não é ninguém sem mim”.

“Isso não é verdade, você sabe disso. Quando eu for embora, você se consumirá numa agonia tão completa e total que escrever será a única saída. E você não vai conseguir escrever, porque eu não estarei aqui para ajudar”.

“Acho que não preciso mais da sua ajuda”.

“Aí é que você se engana. Você não é nada sem mim, por mais metafísica que eu seja”.

“Eu vou tentar a sorte”.

“Você vai se arrepender disso tudo”

Ela se assustou ao perceber que eu falava sério. Sumia pouco a pouco, os olhos em desespero. Ela não esperava que eu estivesse desistindo dela.

“Eu já estou arrependido”, eu disse, vendo-a dissolver-se no ar até se tornar um leve sopro de névoa fina.

Voltei ao silêncio, olhando para o caderno fechado a minha frente, completamente seco de ideias. Tinha certeza de que não conseguiria escrever.

Coloquei água para ferver, liguei a televisão e comecei a ver um filme pela metade, como se aquilo fosse me dar algum conforto.

A inspiração havia ido embora para sempre e eu, como Bartleby, simplesmente havia desistido de qualquer coisa.

Mas então pensei, num sopro de inspiração completamente inesperado – como se ela sussurrasse aos meus ouvidos: por que não escrever sobre a morte da minha musa?

Foi a primeira história que escrevi sem a ajuda dela, mas ainda a ouço dizer: “Se não fosse por mim, você nunca teria escrito essa história”.

Puta.

Ela tem razão. Eu preciso dela.

“A vantagem de ser metafísica”, ela me disse, puxando uma cadeira e sentando-se novamente, “é que eu não posso morrer”.

Ela sorri para mim no momento em que acrescento este último parágrafo, satisfeita por ter seu valor reconhecido. Sentada ao meu lado, saia levantada e pernas à mostra, ela olha para as palavras, reclamando do tamanho exagerado do texto. “Se eu estivesse aqui, resolveríamos tudo em menos de dois mil caracteres. Mas isso você aprende com o tempo. E com a minha ajuda, é claro.”