Lembranças da "Pracinha"
Qual o cinéfilo que não se recorda do belíssimo filme “Cinema Paradiso” de Giuseppe Tornatore?
O argumento do filme é simples e comovente: narra a história da amizade entre uma criança, Totó, com o projetista do pequeno cinema da sua cidade, o velho Alfredo, seu grande inspirador e que tudo lhe ensinou. Já adulto e famoso cineasta, recebe a notícia da morte de seu velho amigo e retorna à sua pequena cidade natal para prestar um tributo àquele que, na infância, o fez apaixonar-se pela sétima arte.
O emocionante filme, que nos faz rir e chorar, levá-nos – involuntariamente – a uma jornada de retorno a nossa infância (quem não foi criança?) e nos faz rememorar acontecimentos, felizes e tristes, pelos quais passamos no alvorecer de nossa existência e que nos acompanham por toda a vida.
Seriam tais lembranças, efetivamente, reais ou haveria nelas muito de invenção de nosso subconsciente emotivo? Até que ponto podemos confiar plenamente na nossa memória longínqua de fatos passados, já desbotados pelo tempo?
Escrevo esta crônica porque gostaria de prestar uma homenagem a algumas pessoas e, especialmente, a um local que marcou a minha infância.
Estávamos nos anos 80 e o momento histórico era fantástico. O Brasil se encontrava na sua fase de transição democrática e respirava liberdade, após uma longa ditadura que durou 21 anos.
Contudo, para nós, crianças e adolescentes daquela geração oitentista, não havia muito tempo para pensar em política; queríamos apenas brincar, aí entenda-se: jogar bola, futebol de botão, subir em árvores para roubar frutas, pular muros e telhados, brincar de polícia e ladrão, esconde-esconde...
Provavelmente, foi a última geração de jovens que antecedeu o turbilhão de mudanças que chegariam na década seguinte: internet, celulares, computadores e video games avançados (basta comparar os atuais com o nosso bom e velho Atari), e também as mudanças ruins, como a violência desmedida que faz as crianças de hoje viverem confinadas em seus apartamentos.
Morávamos em Boa Viagem, quase Pina, vivendo em casas situadas no entorno de uma Praça conhecida por Casuarinas – o que se deve ao fato de ela possuir grande número de árvores desta espécie. A Praça, por nós apelidada simplesmente de “Pracinha”, faz limite com o mangue, sendo um local extremamente agradável e, por incrível que pareça, desconhecido de muitos moradores de Boa Viagem.
Reuníamo-nos diariamente na “Pracinha” e o código daquela reunião diária era quando a Rede Globo fazia a chamada do “a seguir cenas do próximo capítulo da novela das sete”, o que para nós significava a hora de ir à Pracinha jogar bola. Quem chegava atrasado ficava para a próxima partida.
Fábio, Alexandre, Rodrigo, Eduardo, Anderson, André, Luizinho, Sérgio, Mariozinho, Griga, Guga, Vix, Juninho, Márcio, Daniel, Aloísio, Antônio, Hendrik, os Brunos (Silva, Grangeiro e Figueiredo), enfim, tantos nomes, que certamente por lapso alguns não foram citados.
A Pracinha era o nosso campo oficial de futebol, sendo os troncos das suas árvores as traves das balizas. Ali se pode dizer que aconteceu de tudo: amizades, brigas e até namoros (tínhamos algumas belas vizinhas).
Na realidade, naquela pracinha mágica ser feliz era uma equação simples, igual a ser o artilheiro daquelas fantásticas “peladas”, onde, apesar de discutirmos e brigarmos muito, sempre estávamos lá no dia seguinte, no mesmo horário, para começarmos tudo novamente. E que sensação gostosa quando, ao final da noite, exaustos, voltávamos para casa, imundos de areia e sedentos de água e de uma boa cama para dormir.
Em maio de 1992, um acontecimento mudou por completo para mim aquela história. Numa noite comum, um trágico acidente de trânsito vitimou meu irmão Fábio, aos 19 anos, estudante de engenharia, jovem inteligente, bonito, amigo, um dos participantes mais ativos daquela turma. Naquele momento descobri que a vida era muito mais dura do que imaginava, pois tomei consciência de nossa frágil condição de mortal e da fugacidade do tempo.
O fato é que os amigos foram crescendo – com todas as conseqüências e responsabilidades daí advindas –, os nossos encontros na “Pracinha” aos poucos foram esvaindo-se e, por fim, aquelas doces reuniões de peleja acabaram, porque a vida seguiu o seu rumo e nada pode detê-la.
Relevante citar que, em 1999, reunião dos “velhos” amigos – para a qual foi até confeccionado convite – foi realizada na Pracinha. Celebrou-se uma nostálgica partida de futebol no querido local de infância, em homenagem aos velhos tempos, onde muitos dos antigos companheiros (alguns já pais de família) compareceram. Ao final, Rodrigo – hoje conceituado médico tricolor – tomou a palavra e, com propriedade, dedicou aquele reencontro à memória de meu querido irmão, Fábio Rodrigues Barreira.
Hoje, a “Pracinha” ainda existe, mas o nosso amado campo de futebol não mais, pois cravados em seu peito se encontram mastros, afixados em homenagem a um outro jovem prematuramente falecido. A homenagem, embora justa, infelizmente apaga um pouco da memória afetiva de nossa infância.
Todavia, penso que a “Pracinha”, enquanto símbolo de uma infância e adolescência sadias, é e sempre será eterna na memória daqueles que ali um dia projetaram ser feliz.
Esta crônica, portanto, é a minha singela homenagem à “Pracinha”, o meu “Cinema Paradiso”.
2007