A emoção e a apatia
A emoção e a apatia
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
Reconstituo na memória as inocentes carícias, quase pueris, que as namoradinhas da adolescência se permitiam conceder. Depois de cumprir dias e mais dias de cândidas trocas de olhares, era um feito de sustar a respiração quando lográvamos tocar levemente a face nas têmporas. Ao retornarmos ao bar defronte a igreja matriz, para o reencontro com os amigos, estávamos marcados por tal acanhamento que só conseguíamos nos conter devido ao impulso de revelarmos o ocorrido, porque, naquela época, as intimidades com as donzelas, até aqueles inofensivos rudimentos de afagos e alentos, morriam sepultados na discrição dos cavalheiros.
Só muito tarde assistia, pasmado, outros rapazes mais velhos desfiando o rol dos acontecidos, às escondidas, com suas amadas, e, isso, com a meticulosidade estatística de um recenseador do IBGE. O jardim da cidadezinha e o coreto onde nos finais de semana tocava a banda dos aposentados se assemelhavam a cálidos buquês de flores. O cenário de delicadas pétalas e inebriantes aromas exalando pelo ar seria mais adequado para abrigar idílios - não fosse a carência de espaços menos devassados - onde os varões experimentavam dar “um trato” mais ousado do que o incomum em suas exuberantes e inquietas apaixonadas.
Havia, no máximo, emaranhados favoráveis de galhagens de roseiras e uma incidência bem generosa de pequenas arvores, produzindo abrigos precários. Os mais afoitos não se livravam dos sobressaltos com os sentidos totalmente voltados para a aproximação de transeuntes bisbilhoteiros, principalmente daquelas velhotas que dispunham de olhos de lince, fôlego acima de qualquer suspeita, línguas afiadas e por demais venenosas. Nesses momentos de angustia, quando o sangue quase fervia nas veias, os corações palpitavam febrilmente, não só pela explosão do amor juvenil sendo descoberto, mas, também, pelas exigências de uma postura de rígida sentinela.
Na verdade, tudo tinha um limite sem limite. As mãos bobas não podiam ir acima dos joelhos. Pegar “naquilo”, credo em cruz, nem pensar! Se o padre Gregório tomasse conhecimento de algum caso, certamente o desditoso ficaria na missa inteira de domingo ajoelhado no milho com a cara para a galera. Aconteceu com o Carlinhos que foi flagrado com a mão por dentro da calcinha da Tiana, filha do dono da padaria. De vexado, por mais de um mês, o pobre sumiu das vistas da comunidade.
Hoje tantos janeiros depois, contemplo estarrecido e atônito o incrível contorcionismo dos casais desabados sobre os assentos públicos instalados na área por onde caminho no lusco fusco destas tardes quentes. Outro dia, capturei, sem querer, uma mocinha praticando sexo oral em seu parceiro, dentro do carro. Os vidros, embora estivessem embaçados, não escondeu a pouca vergonhice dos desastrados. É comum ver cenas depravantes, coisas que no meu tempo de menino nem imaginava pudessem existir. Tento, em vão, descobrir – ou melhor – atinar com algum ponto de afinidade entre a descontração extremada de hoje e a pudicícia que envolvia os romances, ainda que furtivos, de meus idos de outrora. O que vislumbro, nos dias atuais, não são coisas de gente tida como civilizada. Mais parecem, esses loucos desvairados, duplas circenses empenhadas em desenvolverem composições corpóreas que exigem músculos vigorosos e juntas muito bem lubrificadas. Ocorre mais uma preocupação em desenharem fusões de corpos se ardendo na chama lúgubre da safadeza a céu aberto e da sacanagem desenfreada, que a pura e singela manifestação de sensualidade e afeto.
Na verdade, o que assinala descomedidamente a cara desses protagonistas é uma espécie de apatia beócia, um alheamento maquinal de quem pedala uma bicicleta ergométrica ou masca um chiclete tutti-frutti. Embora a beleza cristalina que norteia e marca para sempre as coisas do amor e os milagres tantos que esse sentimento opera na alma das criaturas, é cindiamente doloroso o sacrifício que determinadas mulheres impõem ao depositarem as coisas pecaminosas no colo de seus pares; posição que, se comparada com acuidade, parece a de um jacaré faminto imobilizando a presa. Outras incautas enlaçam os braços de jibóia e dão várias voltas em torno do pescoço ofegante da criatura, impedindo até a respiração normal. Já uma corrente de garotas conhecidas como “cocotinhas” permanece estática, examinando as curvaturas do nariz, os buracos dos olhos, as bochechas, com a severidade percuciente e temerária de uma cirurgiã novata que planeja cortes e pontos.
Semanas atrás, topei com um grandalhão igual aqueles bonecos inanimados do carnaval de Olinda, dormitando placidamente seu cansaço redondo, boca aberta e babante, sobre o cangote de uma esquálida guria sumariamente vestida. A desengonçada, magra de dar dó, me fez lembrar a Olívia Palito. Adernada ao peso do monstro, parecia prestes a desmaiar. Pela posição dantesca, demonstrava que em breve imploraria aos passantes algum tipo de socorro, antes que soçobrasse, de vez, atada ao fardo da perniciosa ocupação.
Pois bem! Os tempos mudaram, não resta a menor duvida. Mas e o amor? O amor ou a forma de se amar sofreu transformações? Claro que sim... Mas não importa. Sou do tempo em que a coisa era vivida de forma envolvente. Seguíamos por caminhos indescritíveis e, a cada nova descoberta que fazíamos se constituía num triunfo sem igual, numa conquista que guardávamos como um troféu valioso, a sete chaves, bem dentro do peito. Não sou contra esse tal de amor liberal, pelo contrário, apenas entendo (que ele reclama de algo insólito para continuar sobrevivendo). O amor verdadeiro pugna pelo culto de algumas sutilezas, como uma rima, uma poesia, uma frase simples. O amor verdadeiro gosta de reverências; alimenta a chama das tentações escondidas e evidentemente pequenas coisas simples, como um olhar, um afago no rosto, um pequeno toque nos cabelos, um entrelaçar de mãos. Essas pequenas coisas, só são possíveis se rolar um certo e apurado ritual de magia, sem o que a coisa descamba para o vandalismo e para o apagar da chama do verdadeiro sentido de gostar e querer bem.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista.