Recado a uma menina triste

Recado a uma menina triste

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.

- Essas coisas, minha rosa em botão, são assim mesmo: você está imersa na era dos sonhos e é natural que pretenda vivê-los, sedutores que são. E o seu afeto faz com que as suas fantasias sejam generosas. Não se iluda. Não se engane com o que dizem os meus cabelos já querendo ficar brancos. A segurança que insinuam é uma farsa. Às vezes sou um repositório de dúvidas. Não espere que eu possa indicar trilhas. Por mais que tenha andado, não disponho de trilhas sem surpresas. Não se assombre minha menina triste, com antigos rostos gastos de anúncios de cigarro. O tempo não ensina tudo, muito menos impermeabiliza as almas, livrando-as de dissabores e incertezas. Não aposte, jamais, neste meu chapéu ensebado, comprado em lojinha de um real e noventa e nove centavos.

Se lhe pareço algum fazendeiro abastado, saiba que monto pessimamente e tremo nessas estradas de lama que se espicham por entre despenhadeiros. Receio lobisomens, sacis e mulas sem cabeça. Os fantasmas são como doenças daninhas. Nascem, vivem e morrem com a gente. Sinto que a seduz o meu toque de alguma nostalgia antiga. Lamento muitíssimo ter que confessar os meus surtos de felicidade cada vez mais freqüentes, principalmente no verão. O sol tem o poder de dissipar angustias. Minhas pálpebras cansadas não são frutos de serenatas, como lhe parecem, mesmo porque, com essa onda de assaltos e barulho que as ruas fazem, os cancioneiros sumiam literalmente do pedaço.

Posso admitir que minha cara batida pelo tempo até guarde algum leve resquício de poesia contida, porém, as olheiras - estas são resultados de livros e jornais que me chegam - e sou obrigado a ler para me manter informado e lincado no mundo lá fora. Não jogue tudo na solidez de minha mão. Não saberia sustentar, qual de nós dois reclama mais o amparo e guia. E este crônica simples? Por certo você acha que ela brota do nada... Quem dera! Você nem imagina quantas voltas na pracinha dos devaneios do coração e quantos copos de café com leite e horas em claro ela me custou. Como cansam meus pés, estas quimeras literárias. Em verdade, vou e volto, volto e vou, mil quilômetros ou mais, para garimpar meia dúzia de pensamentos articulados. Minhas cicatrizes são totalmente vulgares. Sepulte de uma vez para sempre as suas visões românticas. Jamais duelei por qualquer moça bonita ou princesa, nem as de minha escola, quando usava calças curtas, suspensórios e estudava. O corte no meu nariz foi uma traquinagem infantil. O talho no joelho não é do cravo do calvário, embora talvez eu merecesse. E nem foi por me ajoelhar em demasia que herdei um problema de artrite nos dois dedões dos pés.

A perna eu não quebrei esquiando nos Alpes, mas brincando num vôlei inocente. Não se impressione com minhas tagarelices. Ela é sazonal. Sou papagaio ou sou coruja. Despedaço em miúdo minha timidez mal disfarçada e a dissolvo no meio dessa conversa tola. Na roça, os cavalos que viajam a noite, vão farejando as trevas com seus olhos duros, firmes, incandescentes. Quando uma fagulha qualquer de luz pica a face de uma palmeira, e, então, coriscam no ar imagens estranhas e figuras disformes, os quadrúpedes empacam e não andam. Minhas palmeiras reluzem aparições indescritíveis e eu, burro, emperro meus ímpetos e estanco meu verbo. Apesar de todo esse rosário de insatisfações, sinto que você me julga capaz de empolgar a ONU ou diante de um tribunal de bobocas vestidos a rigor deixar a todos boquiabertos e pasmos. Falar em público me é pesado. Tremendamente desconfortante e massador. Antigamente, quando enfrentava as salas de audiências, parecia que aqueles juízes com suas togas pretas que sustentavam olhos abertos mirando minhas bochechas trêmulas, davam-me a impressão de que voariam todos a um só tempo rumo ao meu pescoço na captura da minha jugular.

A bem do que digo, dois ou três pares de olhos a menos, porque, por caridade, alguns dormitavam ante minha veemência judicial. Você só tem noticia de meus antigos amores conhecidos. Dalva, Carla, Marlúcia, Penha, Talita, Susete, Estefânia... Ninguém lhe informou dos que me repeliram. Na minha juventude, quando as gírias eram perenes e os ditos bucólicos, o repúdio não tinha a secura do atual “não to a fim”, todavia, humilhava duplamente. “Sai de mim, abacaxi, que tomei leite”. A gente coalhava de constrangimento. Somente no fluir de ternuras, minha solidão se dissipava e alcançava o tamanho e a grandiosidade da luz dos meus sonhos mais perenes.

Mas, minha menina triste, por tudo o que acabei de dizer, não se afaste de mim somente para me fazer raiva. Não se distancie porque seus pais pediram, não deixe minha criança, de ficar comigo porque sua filhinha chora sua ausência. Que importam os Mários, os Caleches, os Wellingtons, ou mesmo as Alices e as Isaltinas? Vamos viver esse amor bonito e formoso, esse amor puro e sem barreiras, até que um dia, bem, até que um dia bata a nossa porta, a realidade mortal e se intrometa no meio de nós e articule, ela própria (sem que eu e você estejamos esperando), os desencantos e desencontros outros que não encomendamos.

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos, é jornalista.

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 29/03/2010
Reeditado em 27/03/2017
Código do texto: T2165614
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