CHARLAS DO ALTIPLANO E DO PAMPA – SEGUNDO MATE

Segundo mate (1): agruras da espera.

Fora uma noite acidentada. Sonhos, o frio e a vontade de fazer xixi me tiraram da cama muito cedo. Todos dormem nas cabines dos caminhões estacionados no pátio da Transportadora Juncal, na Avenida San Rafael, a principal via de acesso e de escoamento de Los Andes, o portal da Cordilheira, no Chile.

A todo tempo ouve-se os motores a diesel das carretas com produtos perecíveis. Produzem um ronco mais forte do que o do sono de Toninho Eulina, o dono da carreta 171 da REBESQUINI, onde sou caroneiro.

Sonhei a noite inteira com a vida que vive dentro de mim. Desejos insatisfeitos, coisas inconclusas, o meu trabalho parlamentar de mais de dez anos atrás, interrompido por falta de dinheiro para colocar o nome na rua e a consequente falta de votos para lograr nova eleição. Descobri, então, que não basta ser bom político, é preciso fazer-se bem feita mídia.

Lembrei da frase de Goethe, que coloquei em meu quarto livro, “O Sótão do Mistério”, em 1992: “... a felicidade contrariada, a ação entravada, os desejos insatisfeitos, não são enfermidades particulares de uma época, mas de todo homem...”. O jovem Werther, desde a publicação do livro que leva o seu nome, nos idos de 1774, está cada vez mais vivo, na cabeça dos que pensam.

Apeei da cabine do Volvo com extremo cuidado para não acordar o parceiro de saga. Ele, conquistador de estradas, obreiro do comércio internacional. Eu, o aventureiro sonhando com um MERCOSUL sem barreiras alfandegárias.

De tanto ler sobre a terra americana e os seus povos, sou, antes de tudo, um sul-americanista. Acaso não nos protejamos contra os “primos ricos do Norte”, com uma unidade indestrutível (tal como San Martí e Bolívar predisseram em sua época), não resistiremos à ALCA, o tratado de livre comércio das Américas, que se contrapõe aos nossos sul-americanos interesses.

(Os cães demarcam o território com a sua urina. Cães de rua das docas fluviais de Rosário, na Argentina, formam três matilhas diversas, distantes entre si cerca de 150 metros. Os líderes de cada uma delas limitam território, a sua faixa de domínio. Somente farejam a urina dos outros. Sob vigilância do machario, as cadelas não copulam com os machos do outro bando. São quinze ou vinte cães em cada matilha. Será sabedoria dos animais este instinto de sobrevivência? É ali, no cais, que está o alimento que lhes dá vida. Brigam entre si à larga, uivando a cada mordida que o mais forte ou o mais faminto distribui.)

Enquanto desço do caminhão, famélicos cachorros brincam ao redor. Farejam as pernas de minha calça, enfiam os focinhos entre os seixos rolados, à busca de algum odor que lembre comida.

Que interessante é o instinto! Como tudo é claro e percebível. Os “cuscos” sabem que somos amigos. Sempre sobra algo de cada refeição e fazem uma festa com essas migalhas. Todavia, as mais das vezes, saúdam a comida com brigas entre si. Ganha sempre o mais forte. E a seleção natural, de Darwin, se faz verdadeira.

Descubro, a cada dia vivido, que o homem que aprendeu a pensar é um condenado. Busca os antecedentes, cogita ilações, compara situações análogas. Aquele que não se fez do mundo, que não quis ou não pode estudar, tem um mundo diminuto a sua frente. Olha, mas não vê.

Faz quatro dias que estamos neste pátio de estacionamento, à mercê do ronco dos motores, dos humores da Cordilheira e o seu hálito gelado. O despachante encarregado de ajustar a liberação da carga com as autoridades aduaneiras informa que, possivelmente, seguiremos para Santiago, que dista apenas 86 km e me parece dez vezes mais.

Os intermináveis trâmites burocráticos do comércio internacional prejudicam a sua execução. Condutores da riqueza exportada por via rodoviária, os “carreteiros”, são os principais prejudicados com as longas esperas alfandegárias em cada “porto seco”: deixam de ganhar a sua comissão por quilômetro rodado. E o salário se torna mais minguado ainda. A isto se segue um imenso estresse psicológico.

Com os sentidos voltados para a família, muitíssimas vezes sem comunicação com os seus, ficam a maldizer a própria profissão. intermináveis conversas, o mate-chimarrão, o vinho e a cerveja, à sombra das carretas, temperam o tempo das esperas. As longas charlas mitigam a inquietação.

Enquanto atravesso o pátio com a toalha, a escova de dente e o rabo dos inseparáveis vira-latas batendo nas pernas, cabeça cheia da vontade de escrever, meus olhos sonolentos vêem uma silhueta de pássaro sobre o cimo da cordilheira. Com os seus quase quatro metros de envergadura, seria um condor? Mas as asas eram duplas e não se moviam. Era um homem e o seu aeroplano...

Alfonso Gallardo, um moço de vinte anos com o ensino médio recém completado, limpa o chão, evitando que o pó do pátio se acumule sobre as lajotas da sala de televisão. Este recinto é o elo de ligação com o mundo externo, excluindo a barreira do idioma. Um dos canais pega a TV Globo. E o telemundo faz sucesso no idioma pátrio.

Gallardo é um poeta. Mostrou-me seus versos na noite anterior, quando me delataram como escritor. É bonita a sua poesia, eivada de perspectivas e preocupações sociais. E o espírito lírico de Gabriela Mistral e a agonia social de Don Pablo Neruda (mais vivos do que nunca), adentraram a sala plena de espectadores. Vinham com a cara suja, arranhados pelos subterrâneos da memória.

Alfonso, bem se pode ver, é um moço pobre, e me fala que sua família não terá dinheiro para que se matricule na Universidade. São muito poucas as vagas na universidade pública. Aqui no Chile, como em todo o mundo, a perspectiva de vida se rege pelo dinheiro. Ninguém vale pelo que é, mas pelo que possui.

E, no repente, num daqueles milagres do pensamento, a Cordilheira transpirou a poesia do Altiplano de América e da Pampa. Os sonhos libertários da unidade americana aglutinaram o cobre, o petróleo e a Amazônia.

Na magia do vento que vinha da Argentina, assobiando por sobre a Cordilheira, pressenti o cheiro da fumaça de algum canto dos galpões gaúchos por esse Rio Grande de Deus, tão longe, e ao mesmo tempo, tão dentro do meu coração andarengo.

Bem, é hora de lavar talheres, pratos e panelas, algumas bem cascurrentas, cheinhas de picumã. O fogo-de-chão estava dentro de mim. A chama votiva alumiava no olho da Cordilheira.

(1) Ou mate-chimarrão: Infusão de erva-mate preparada em cuia de porongo e sorvida por meio de uma bomba. O mate é uma bebida saudável, tônica, estimulante e reconfortante. O hábito do mate-chimarrão é muito difundido entre os habitantes do Pampa, das imensas planícies de três pátrias: Brasil, Argentina e Uruguai. Mesmo que o mate possa ser compartilhado, como ocorre no Rio Grande do Sul, para que se possa sorvê-lo leva algum tempo, e é uma tarefa solitária. O autor usa esse tempo (para sorver a bebida) como metáfora para a reflexão que irá fazer, propiciando a abordagem pessoal que dá origem à crônica.

– Do livro O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2005/2009.

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/216508