O perdigayro
Seu Manuel era um homem do campo. Suas idas à cidade contabilzam, no máximo, uma meia dúzia de vezes. Por isso mesmo seus pés e cabeça sempre foram ligados à terra. Era um homem de poucas amizades mas que duravam pela eternidade. Quando moço, há muito tempo atrás, ficara viúvo e sem filhos. Jamais se casara novamente, pois onde vivia não havia muitas outras mulheres e, mesmo que houvesse, seu Manuel não era dado a essas coisas. Resolveu, então, que o que deveria fazer era continuar semeando a terra, vivendo lá e aproveitando a paz do campo.
Sua atividade de lazer era a caça, o que fez com que ele fosse atrás de um cachorro, há muito tempo atrás, que fosse bom pra isso. Conseguiu, através de um vizinho que tinha um primo que tinha um amigo que tinha um perdigueiro, arranjar um desses pra ele. Era um belo filhote e demonstrava que seus instintos eram mais aguçados que os da maioria de sua espécie.
Quando chegou em casa seu Manuel deu-lhe alguma comida. Como a criação de seu Manuel mandava, ele colocara em um prato qualquer as sobras que ficaram para trás de um almoço qualquer. Assim que o cachorro viu aquilo, teve uma reação bem adversa àquilo que se esperava: desmaiou.
Depois que acordou, saiu caminhando, com fome, pelo gramado do pátio. Enquanto isso seu Manuel ficou a observar-lhe e logo se intrigou. O cachorrinho, ainda filhote, tinha um jeito meio estranho de caminhar, parecia que ao mesmo tempo flutuava e dava leves reboladinhas. Seu Manuel, homem da terra, criado com amor e preconceitos, não pode deixar de associar o jeito do animalzinho com o jeito de alguns meninos que havia visto em suas idas à cidade. Logo que pensou isso, riu: isso é coisa de gente, não de bicho.
Os anos foram passando e o bicho (não tinha nome, nome era outra coisa de gente) foi mostrando-se cada vez mais capaz, cheio de habilidade e ainda com aquela intrigante suavidade no caminhar. Aos poucos o dono se acostumou com as excentricidades do bichano e passou a dar-lhe água sempre nova e gelada, comida que ele mesmo comia em um prato similar ao seu e mais atenção.
Um vizinho, malicioso e cheio de más-intensões, fazia piada e dizia que o cachorro não prestava, era como se tivesse um gato no quintal, porque de fato o animal não acoava e mordia ninguém. Um dia seu Manuel teve a confirmação: o cachorro entrou no quarto dele e pegou, nas coisas velhas da mulher, um lacinho. Pôs sobre a cabeça e ficou rolando pelos vestidos; parecia uma diva canina. Em um primeiro momento foi um choque, já que aquela consciência criada pela dura jornada de uma vida no campo lhe imputara certas crenças e preconceitos que pareciam impenetráveis. Mas após um pouco de reflexão, acabou por consolar-se a si mesmo, de modo que manteve o cão com as mesmas regalias de sempre e com um apreço até maior, pois quem da região teria um cão gay, um perdigayro?