Como o Diabo Gosta

Como O Diabo Gosta

Aconteceu o que me parecia impossível: consegui capturar o diabo que morava escondido lá no fundo do armário.

Usei de uma artimanha simples ao atraí-lo para dentro de uma garrafa de vidro.

Claro que depois vivi com um certo receio. Temia que alguma pessoa desavisada abrisse a dita garrafa, pensando, por exemplo, que se tratasse de álcool, já que o Ditocujo é invisível. Pois sabemos que a curiosidade mata. No caso, libertaria. Lá iria o Cramunhão mundo afora; mas certamente voltaria para o antigo endereço e aí, coitado de mim, a conta seria bem alta. Porque o ente é mau e, além disso, ruim. Ia querer se vingar por tê-lo enganado.Pelo menos pensava assim.

Sei que na cabeça de todos está a pergunta: mas como ele conseguiu prender o Ditocujo numa garrafa?

A pergunta é mais do que válida. Primeiro, porque o diabo não é matéria, donde não poderia ser preso. Depois, porque mesmo que isto fosse possível, ele é o mestre da esperteza, donde, como acreditar que pode ser enganado por um simples mortal?

Bem, antes de mais nada, lembro que isto aqui é ficção e, portanto, posso tudo a meu bel prazer. Aqui sou Deus e Diabo ao mesmo tempo. Além disso, o meu prisioneiro era um diabo do último escalão, um pobre coitado na hierarquia lá deles.

Isto posto, conto a tática que adotei: como medida preparatória , deixei o amor fluir livremente, sem medos, sem restrições, sem barreiras.

Entreguei-me a este sentimento por inteiro. Apesar das resistências ( impostas por ele, é claro) deixei-me devorar pelas chamas e ser levado por aquele tsunami que flui do fundo da alma da gente quando ama. Não havia espaço para ele. Percebeu que para reverter a situação tinha que tentar destruir aquele meu sentimento tão forte, tão imperioso. Mas para isto teria que dar as caras.

E assim aconteceu. A primeira tentativa dele foi reativar os sentimentos negativos que foram consumidos, mas dos quais restavam pequenas brasas lá num canto escuro do meu espírito. Fiz o jogo dele. Ele reabriu todas as feridas, todos os desencontros, todos os desejos incompatíveis, todas as desesperanças. Como no judô, me deixei levar e fiz do golpe do inimigo o meu próprio contragolpe. Liberei os maus sentimentos : que jorrassem ! Foi uma boa oportunidade de exorcizar os meus rancores. Algum tempo depois, meu coração estava limpo e em paz.

Estava pronto.

Um dia eu disse ao Diabo: “sou capaz de fazer uma coisa que você não faz: apesar de meu tamanho, e do meu corpo, sei entrar nesta garrafa”. Senti um tremor no ar e algo como um sentimento de dúvida percorrendo aquele ente estranho que ali estava. Senti algo farfalhando no ar.

Coloquei o meu retrato no fundo da garrafa pelo lado de fora e disse: “Olha lá para dentro”. Silencio. Calmaria.

“Duvido que você faça o mesmo”, continuei. E virei a garrafa para a posição que julgava onde ele estava. De repente a garrafa tremeu na minha mão. Rapidamente coloquei a tampa, girei o número de vezes necessário e logo senti algo se debatendo lá dentro. “Agora te peguei”, pensei com meus botões. Senti as vibrações fortes da frustração do Anhangá , senti como se julgou um tolo, como se odiou por causa disto.

Dominado o Diabo, toquei a minha vida com amor.

Vivi momentos inesquecíveis, aqueles em que sem qualquer interferência se curte o corpo com outros corpos e a alma com outras almas.

Mas depois de algum tempo, senti algo diferente. Meus desejos começaram a perder o viço, e a chama que alimentava os meus sentimentos, pouco a pouco não tinha mais combustível. Faltava alguma coisa. Faltava aquela malícia, aquelas fantasias, aqueles desejos secretos, aqueles fetiches que alimentam sexualmente uma relação amorosa no tempo.

E então compreendi: faltava a presença do Diabo. Sem ele a comida ficava insossa.

Lembrei-me então da garrafa. Continuava na sombra, lá no fundo do armário. Peguei -a, agitei-a, nada. Nenhuma vibração, nenhuma presença. Fiquei apavorado, teria morrido lá dentro? Mas que besteira, diabo morre?

De repente me veio à mente: “peça de joelhos, ele está muito acabrunhado, precisa de um consolo para o seu orgulho ferido”. Ajoelhei-me, não como sinal de adoração, quero que fique bem claro, mas como uma forma melodramática de pedir: “De sinal de vida, vou soltá-lo”. Finalmente ele se manifestou. Abri a garrafa e ele saiu. Senti a agitação no ar. Mas não de ódio, apenas de alívio.

Não vieram as maldades como eu temia. Mas a paixão....essa passou a arder num fogo brando, mas constante, e cujo calor acalenta o meu dia a dia.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 24/03/2010
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