Pois os pombos nunca deixarão de ser pombos

De fato, pombos de praça são desprezíveis. Sempre aos pés daqueles que os alimentam, eles são livres, tem asas e um céu imenso que em partes é virgem e tão límpido quanto sua inocência. Digo que são inocentes pois as vezes me recuso a acreditar que é de livre e pensada escolha que vivem dessa maneira e digo que são desprezíveis porque se recusam a sair da comodidade de migalhas, são desprezíveis porque estão sempre satisfeitos com restos, mas antes de mais nada não entenda por “migalhas” bens-materiais, ao menos não é nesse sentido que digo, e caso resolva encarar as migalhas apenas como dinheiro, saiba que você enxerga tanto quanto um pombo de praça. Pombos por sua vez, quando de cabeça erguida, tem um campo de visão muito maior do que o de qualquer presa, porém isso não o faz predador, a não ser dos farelos jogados ao chão, estes sim os agradam e os satisfazem, pois já estão próprios pro consumo, pequenos e cortados, largados num chão tão limpo quanto a sola dos pés de quem despedaçou a grande fatia. E agora chegamos onde eu queria chegar: “A grande fatia”. Lembremos que a comida não foi trazida na intenção de alimentar os pombos, e a vida não lhes foi dada na intenção de que vivessem de migalhas, do contrário não teriam asas. Pombos bicam migalhas pequenas e enquanto fazem, nada mais lhes passa pela pequena e atrofiada (devido ao tempo de não uso) massa que possuem e que deveria fazer com que pensassem. Enquanto se contentam com pedacinhos, esquecem o dia, esquecem o céu, o sol e a vida, nada mais lhes é interessante, até que aquele acabe e outro caia no chão.

Um fato interessante que se deve lembrar é que, todos os dias os pombos acordam cedo, juntam-se a outros pombos e vão todos pro mesmo lugar ganhar suas migalhas de cada dia, restos da grande parte que foi esfarelada por aquele que tem por esporte e ambição ver os pombos bicar o próprio chão em que pisam, e mais uma vez assim como no dia anterior não conseguem nada a mais do que migalhas, e o pior, vão ficar satisfeitas e irão com a mais cega de todas as certezas voltar no outro dia seguinte.

Mas enfim, a corrida desesperada de pombos arrancando migalhas do bico de outros pombos é tão interessante, que faz o homem comer sua refeição na praça ao ar livre, só pra jogar restos aos acéfalos alados que diariamente numa atitude mecânica de um instinto falso incentivado pelo homem continuam sua “vida”, até que não possam mais o fazer. O que eu quero propagar quando eu digo que pombos de praça são desprezíveis, é que não existe câncer maior e mais doloroso que o do falso contentamento da comodidade, pois são tão mais belas as asas cinzas com manchas verdolengas num céu claro, do que aos pés de alguém que lhes convence que o melhor pra eles são as poucas migalhas que ele tem as oferecer. De certa maneira, pode-se entender um suicídio induzido, tão trágico e exagerado é esse termo quanto o fato de que pombos, num domingo de feira ao ar livre, têm de ir à praça, mesmo na maioria das vezes, sem saber por que vão a tal lugar. Foram induzidos as migalhas, e lhes deram um câncer. Foi dada a cada um a escolha e preferiram uma vida doentia e repetitiva, cultivada a gerações. Pombos de praça me causam tristeza, raiva e nojo, e se você não me compreende quando digo o que sinto, é porque enxerga menos que um pombo de praça.

É tão forte e incômodo que é possível sentir a perda de vida, o tempo jogado fora e o vento desperdiçado pelos herdeiros da corrida feita sempre no mesmo percurso. Não gosto de pensar dessa maneira, porém, é como eu os enxergo, é inevitável. Mas não pense que me sinto superior por isso, ás vezes, a ignorância é um dom, e talvez para os pombos seja uma dádiva, pois existem coisas que devem ser do jeito que são e não devem ser contestadas, como por exemplo, a vontade dos pombos. Talvez se eles despertassem e conseguissem abandonar as migalhas, poderiam talvez sentar-se num banco e jogar migalhas aos inferiores, pra se divertir enquanto eles se rasgam por uns dólares trocados. Eu fico pensando e tentando entender o fato mais interessante nessa fábula cotidiana, a possibilidade de que cada um que aceita essa pequena migalha de minha mente da maneira que lhe for mais justa, coma e volte amanhã por mais, ou talvez você possa tentar bater asas e procurar algo que lhe agrade mais que farelos, se você fizer isso, do fundo de meu íntimo, eu agradeço e o parabenizo. Mas por mais insano que possa parecer, pombos de praça me fariam falta, pois, por mais desprezíveis que demonstram ser é necessário que eu tenha a quem jogar minhas migalhas.