Um simples café
Hoje é dia de tomar um café na esquina do Zé, não na esquina propriamente dita, mas no seu bar que fica na esquina de minha casa, que por sinal tem uma decoração de fazer inveja ao café “A Brasileira” do Chiado em Lisboa. Sempre sonhei um dia poder pisar esse palco onde jaze meu grande amigo de longa data Fernando Pessoa, dizem que ele se tornou famoso por seus versos profundos e que seus heterônimos não eram mais do que uma forma de dispersar os seus pensamentos. Talvez isso seja uma verdade indesmentível, ainda que eu opte por dizer que ele foi tão fantástico como os seus heterônimos, mesmo que se tratasse da mesma pessoa, sempre olhei para eles como sendo três mais um. Almada Negreiros também era cliente assíduo do bar do Zé, do Zé de Portugal, não deste da esquina do meu apartamento; este aqui, tirando a decoração à base de ornamentos tradicionais - é triste, como a chuva que acaba de cair em frente à minha janela, que não é mais do que o tilintar azedo de nuvens carregadas de amargura.
Se a chuva falasse iria certamente dizer umas verdades, mas como não fala, resta-nos apenas esperar pela hora do adeus. A hora em que o Zé poderá colocar novamente sua esplanada na rua - seu bar pede clemência à chuva - sempre que ela vem, é ver uma cambada de cachaceiros levantando a tenda, é uma debandada geral, em que apenas o pinguço do Zé, dono e senhor do bar, se enrosca no balcão com uma barriga de gases tóxicos, fazendo inveja a muitos gasistas. Não que ele o seja, longe de mim esse pensamento, apenas é dito da boca para fora. E vale o que vale.
O Zé é daqueles que ama a cerveja como se de uma loira se tratasse (nada contra as mulheres loiras), bebe como se não houvesse fim, o pior é que ele se esquece que é o dono do “estaminé”, e não convém passar dos limites, caso contrário, poderá estar prestes a entregar o ouro ao bandido. Bandido esse que de calças arreganhadas, com ar misterioso, pisca o olho a essa relíquia, como se acabasse de ver o paraíso e onde seu desejo se equipara ao do taberneiro.
- A disputa promete...
Eu acabo de entrar nesse espaço "acolhedor" a meio da disputa, não que eu venha em auxilio do taberneiro, apenas por aqui decidi passar para me deliciar com o melhor café da cidade, e digo isto com toda a hombridade de quem preza o Zé. Meu conhecido de longa data, que mal me vê, pede logo um autógrafo, ainda hoje não sei o motivo do seu sorriso. Talvez ele goste que eu beba seu café, é um café feito às três pancadas, que não tem mistério, porém, ele me sabe sempre bem, mesmo não sendo adepto do café. Provavelmente, foram nossas vidas que nos aproximaram - também ele é filho de portugueses - da terceira geração, está-lhe no sangue o jeitinho lusitano, negá-lo seria uma ofensa aos seus princípios; mal abre a boca, vocifera um sem número de palavrões, que parecem bombas explodindo na sua boca. Certamente que em tempos de guerra, ele seria atirador: atira as palavras com uma velocidade e pontaria de fazer inveja a muitos Snipers. Suas palavras não agridem, não progridem, elas, apesar de nocivas, são ditas sem agressividade alguma, faz-me recordar as pessoas do Porto, que dizem dois palavrões em cada frase e, mesmo assim, são ingênuas. Ele é de Vila Viçosa, criado no Rio de Janeiro, e toma conta do botequim que seu pai montou no longínquo ano de 1965, ele o trata como se de um filho que ele nunca tivera. Mulheres teve várias - segundo me conta - mas nenhuma conseguiu agüentar seu cheiro de borracha queimada. Há dias que tenho pena dele, que gostava que ele se endireitasse, que parasse de beber e que se entregasse de alma e coração ao seu verdadeiro dom: escrever versos para sua amada que virá um dia. Pelos menos assim ele acredita, mas a idade começa a pesar, o que torna esse sonho uma simples miragem.
- Sim, este bonacheirão, de barriga grande, cabelos ao vento, nariz aguçado e cara de bolacha - escreve, impiedosamente bem, não sei onde herdou tal dom - ele diz que aprendeu a escrever com seus pais, e que se foi aperfeiçoando à medida que as cervejas se misturavam no estomago; o resultado, por incrível que pareça - é fantástico. Ele acaba por ser um alambique, que produz a melhor cachaça da Tijuca.
- E eu, seu mais fiel recruta.