Vivendo e esquecendo

Edson Borges Vicente[1]

Fui desafiado, certa vez, a projetar um sistema de avaliação para alguma escola. A escola deveria ter o perfil coerente com o sistema, caso contrário, deveria eu inventar também a escola. E, ao inventar a escola, deveria, por certo, inventar os alunos e, com eles, os professores, a disciplina, a turma, a série e tudo mais que há em uma escola. Pensei logo em esquematizar uma estratégia mirabolante e revolucionária, tal qual o meu perfil critico e por vezes marxista. Pensei nos conteúdos dialéticos e nos “conhecimentos-instrumento” de Paulo Freire. Pensei planos de curso e de aula (a parte chata), pensei uma escola ideal, com, alunos bem capacitados que aprenderiam bem a ser cidadãos. Pensei um espaço organizado e confortável, com salas com ar condicionado e autonomia pedagógica do professor. Pensei provas discursivas que valorizassem a capacidade de apreensão e compreensão dos fenômenos sócio-espaciais em detrimento dos conteudismos enciclopédicos da educação tradicional. Pensei em Geografia. E, como todo pensante que se vê desafiado a pensar, com a arma poderosa da linguagem, pensei brincar com as palavras, produzir um texto coerente, científico, certo de que o poder do padrão de escrita por mim estabelecido, tiraria de letra o trabalho esperado e me concederia um dez e os créditos da disciplina “Avaliação da Aprendizagem”, que valorizariam meu currículo. Pensei tudo isso até o momento em que abri o livro de Ruben Alves cujo título era “A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir”, da editora Papirus. Assim como o autor, tive curiosidade de conhecer a escola e a forma inovadora de ensinar e aprender que nela se dava. Afinal de contas, estava ali a minha oportunidade de planejar, arquitetar e projetar dolosamente um sistema de avaliação da aprendizagem na “Escola da Ponte”. Como eu já tinha conseguido a escola, era só a segunda parte que precisava ser feita.

Comecei a degustar a obra, do prefácio aos “posfácios”. Minha cabeça começou a rodar depois que eu percebi que aquela escola que Ruben Alves trazia ao meu conhecimento, mais que certamente, não existia! E isso era só o prefacio que não estava nem nas palavras de Alves. Bom, mesmo desacreditado, insisti na leitura. Afinal, há tantos prefácios loucos, cujos autores dizem loucuras, talvez querendo ofuscar a obra, tamanha a sua criatividade.

Chega então o primeiro capítulo de Ruben e mergulho, eu, numa estória fascinante, digna de ser uma das melhores ficções que já li. Vem, o velho professor, falar de uma tal “Filosofia Zén” que pregava o esquecimento. Mas pra que serve o esquecimento? A aprendizagem é que deve ser o objeto do meu trabalho! Afinal, não deveria, eu, projetar um sistema de avaliação da aprendizagem? Lembrei-me, então, do Filósofo Nietsche, para o qual, a memória confina o homem no passado e o aflige. De certo que, se as pessoas não pudessem esquecer, mesmo em parte, da morte de entes queridos, a primeira paixão. Ou pior, as mulheres, das dores dos partos. Seria terrível! Que mulher quereria ter outro filho? Os mestres Zen, ou mestres da desaprendizagem, ou, do esquecimento, como bem retrata Alves, cuidaram para que seus aprendizes (seria melhor dizer: “esquecíveis”) “aprendessem a desaprender / esquecer”. Paradoxo? Talvez não! Para que posamos aprender coisas novas é necessário, primeiro, esquecer as idéias prévias. Assim como o preconceito não nos deixa ver, de cara, o valor que tem os diferentes, ou seja, todos. Aprendendo isso, ou melhor, esquecendo o que se entendia por escola, passei a me abrir e entender / compreender como funcionava a Escola da Ponte. Depois, alguns professores meus, me relataram ter visitado-a.

Como sou pretensioso! Parece até que todo mundo já tem ciência da existência da Escola da Ponte. Eu mesmo só a conheci pelos textos de Ruben Alves e de seus colaboradores no livro. Por curiosidade, com uma aluna minha do pré-vestibular que passou para pedagogia. Ela estudou comigo, “aprendeu” e passou no vestibular. Estava tudo coreto. Eu ensinei, ela aprendeu. Assim, avaliei sua aprendizagem! Mas, engraçado, aprendi com ela sobre a Escola da Ponte. Pensei comigo: livro cientifico, teórico, sobre a aprendiagem! Enganei-me. Precisaria, eu, esquecer para entender...

Longe de ser Ruben Alves e de ser cronista do Correio Popular, farei um breve e perigoso resumo do que seria a Escola da Ponte. Uma escola sem turmas, sem salas, sem séries, sem programa, sem planos de curso, etc... e, conseqüentemente, sem avaliação? Confesso que foi, essa, a minha primeira pergunta. Pensei em uma bagunça incoerente de alunos, professores, cadeiras, barulho, brigas, brincadeiras e, até, no extremo: acidentes - um aluno maior que pisa no menor; um pequenino que corre e bate na mesa; as professoras gritando até que soasse o sinal e todos corressem ao pátio. Por descuido não percebi, nesse primeiro susto – um “Lapsus” - que a Escola da Ponte não tem sinal. Mas e a avaliação? pensei, analisei, ai então lembrei, e esqueci. Ao esquecer, abri os olhos e pude perceber que estava diante algo novo, que só se aprende com o esquecimento. Algo especial. Uma escola que, como Ruben Alves afirmou, e que eu dou ênfase, não podia “imaginar que pudesse existir”.

Na escola da Ponte, a base de tudo é a cidadania, a democracia e a solidariedade (não a caridade, mas a solidariedade que é mais pura, mútua, cúmplice). Mas, como não há programas, não se ensina cidadania. Como disse bem o autor dessa “bibliografia fictícia”, se vive. As pessoas coabitam e vivem a escola. Os planos partem dos alunos que se reúnem em busca de um conhecimento de comum interesse do grupo formado e, a partir disso, com a colaboração do professor, pesquisam. Usam Internet, dicionário, filmes, livros, etc.. os maiores ajudam os menores e todos se solidarizam. Quando se acha que a pesquisa foi bem sucedida, o grupo se desfaz e... formam-se novos grupos. Idade e sexo não fazem diferença. Somente “são” diferenças e enriquecem a relação inter-pessoal.

Bom, o resto eu não vou contar por que todos os interessados devem ler a obra belíssima de Ruben Alves, é lógico, antes, esquecendo tudo o que se entende por escola.

A avaliação? Pedir, a cada aluno da Escola da Ponte, que escreva uma frase que defina a escola e se deliciar com as palavras daqueles que mais podem avaliar o que é chegar ao “satori”.

(anexo)

O verso da menina

(PONTE, Escola da. O essencial não cabe nas palavras, p. 73)

Quando eu era pequenina,

Acabada de nascer,

Ainda mal abri os olhos,

Já era pra te ver.

Quando eu já for velhinha,

Acabada de morrer.,

Olha bem para os meus olhos,

Sem vida. Te hão-de ver.

Bibliografia (para quem quiser ler)

ALVES, Ruben (1933). A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. 5ª ed. Campinas, SP: Papirus. (2001 1ª Edição)

[1] Bacharel e Licenciado em Geografia pela UERJ. Professor da rede estadual de Educação do RJ. Coordenador e professor do PVNC Cabuçu

www.geoeducador.blogspot.com