Dona Carmélia
Dona Carmélia, com seus noventa e poucos anos (nem ela se lembrava ao certo a idade que tinha), estava deitada já havia mais de quinze dias. Suas mãos e pés, ressequidos pelo impiedoso tempo que lhes corrompera, encontravam-se estáticos. Os olhos, fechados e que nem por isso deixavam de expressar toda a sua carga experiencial, pareciam ainda benevolentes, por mais que sua má sorte tenha tendado transformá-los em duas esferas frias e odiosas. O coração, fraco e debilitado, teimava em lutar contra a morte, mesmo sendo esta uma batalha desigual, pois certamente que se daria por vencido, fatigado e levemente humilhado, mais dia ou menos dia.
Em sua cabeça, contudo, percorria com passos largos ao encontro de pessoas que não foram amadas por criatura alguma mais do que o foram por ela. Lá estavam Seu Jorge, o marido, a filha Marina e Banzé, o cachorro. Quando ia ao encontro deles sentia-se, sabe-se lá porque, renovada. Tinha as mãos e pés suaves como nunca, desfrutava de um humor excelente e trazia na boca o hálito, há tanto esquecido, da volúpia.
O primeiro que ela viu foi Banzé. O cachorro, como sempre, viera a seu encontro tranzendo-lhe boas novas, com seus latidos de uma criatura que só capta o que há de bom e maravilhoso à sua volta. Marina, que parecia ter também voltado no tempo, estava no auge de sua forma, com vinte e poucos anos e pretendentes, cheia de vida e com aquele sorriso lindo que parecia muito com a calmaria que viera após uma avassaladora tempestade. De fato essa sempre fora a imagem que o sorriso dela lhe passara, pois à tempestade dona Carmélia associava as dores do parto, e como fora despertada alguns minutos depois de dar à luz sua filha, a primeira imagem de Marina que ela teve foi ver em seus lábios, frágeis e suaves como uma pluma, um sorriso inocente e de cumplicidade. Seu Jorge, não espantosamente para dona Carmélia, se encontrava na mesma idade que ela parecia ter, estava também no auge de sua masculinidade e ainda não perdera aquele encanto que sempre demonstrara ao pousar os seus olhos no corpo moreno da mulher. Não é espantoso que ele estivesse nessas condições, pois ele jamais tivera a oportunidade de envelhecer. Ceifaram-lhe a vida subitamente, de modo brutal e sem justificativas.
Após os minutos de contemplação, em que não se fala nada e nem se ouve, apenas se olha e toca, Dona Carmélia pôs-se a falar, a perguntar-lhes como poderiam ter se reencontrado daquele modo tão misterioso e cheio de esplendor. Parecia que haviam tirado as pilhas do tempo, que ele parara e coincidentemente no melhor momento possível. Essa estranha sensação de um gozo completo durou pouco. Eis que dona Carmélia desperta e nada mais vê do que seus pés e mãos miseráveis, ouve seu débil batimento cardíaco e sente as dores do prelúdio à morte.
Olha em volta, envolta de anseios, à procura da imagem que há tão pouco tempo lhe fizera sentir-se tão bem, tão distante. Só o que vê é um vaso de flores com cheiro de velho, cores opacas e flores murchas. Passam-se longuíssimos dois minutos e ela continua a manter os olhos à procura de algo. Por fim cansa e adormece novamente.
No mesmo instante em que adormece ela acorda, mas novamente tem as mãos e pés reconstituídos pela cútis juvenil o que lhe causa uma impressão de estranheza, uma curiosidade que não fora tão boa quanto a anterior, mas que ainda assim é capaz de lhe elevar o espírito até alturas insondáveis. Agora, contudo, estão ela e Seu Jorge, apenas. Sente que o amor lhe tocara não havia muito, sentia isso no olhar de seu homem e em seus próprios corpos, ambos suados, extenuados e satisfeitos. Estavam deitados, lado a lado, olhando o céu estrelado e contando as estrelas. Seu jorge sempre lhe dissera que se amantes contam estrelas todas as noites, cada estrela contada seria uma garantia de mais um dia de amor, de suor e de satisfação. Sempre que podiam contavam estrelas e, deliberadamente, as aumentavam em número, pois cada qual queria mais e mais o amor do outro; o seu próprio amor. A contagem fê-la adormecer e ao despertar tinha mais uma vez os pés e mãos secos e doloridos.
Agora o quarto parecia um pouco menos claro, deve ter se passado um bom tempo pois o crepúsculo já não mais se fazia presente. As flores, sobrepostas em uma mesa próxima a ela, pareciam continuar murchas, sem cheiro e sem vida, como suas mãos e pés. Muito tempo se passou dessa vez, cerca de cinco minutos, e então caiu em um sono novamente.
Desperta, rapidamente e com uma leve desconfiança, pois que sempre que havia acordado nas últimas duas vezes tivera uma surpresa boa mas que em seguida fora quebrada por uma dor insuportável. As ilusões, quando postas a baixo, por mais que nos satisfaçam enquanto durem, fazem cair sobre os ombros um peso que inevitavelmente nos faz dobrar ante ele, e reerguer-se é sempre penoso, às vezes demasiado. Viu-se só, dessa vez, e igualmente linda e jovem como antes.
Sem nenhuma outra intenção, saiu a caminhar, aproveitando o toque gentil da grama sob sus pés. Havia orvalho e um cheiro campestre inundava-lhe as narinas. Narina, Marina, Menina. Palavras se confundem e a confundem. Marina parecia estar tão longe. Longe, Jorge, Hoje. Palavras mais confusas que surtem o mesmo efeito bizarro. Bizarro, Cachorro, Choro. Mais uma junção de coisas que aparentam não fazerem sentido mas que lhe são caríssimas e fundamentais, coisas que ela procura e não encontra, não toca, não beija e não acaricia.
Dessa vez o despertar foi ainda mais duro. Acordou e viu que as cores estavam muito mais opacas do que antes, muitos mais difícies de serem diferenciadas. A única coisa que tinha uma cor que lhe definia a forma eram as flores: de um vermelho vivo;paixão e sangue. Surpreendentemente exalavam um aroma típico, forte e de presença inconfundível, um aroma de amor. Mas Seu Jorge já não mais se via por ali, nem Banzé e tampouco Marina, embora a narina, hoje, acontecimento bizarro, trouxesse do longe ao choro, a menina, o homem e o Banzé. E dessa vez Dona Carmélia cai em profundo sono, um sono do nada, para não mais acordar, recordar e respirar.