ANJO X ANJO
Transcrevo uma anedota de Alahnat Rosemberg, sobre os anjos da guarda.
O humor também é necessário nos assuntos transcendentais. Por intermédio dele, muitas lições espirituais são transmitidas de forma leve e divertida.
"Na calçada de uma das mais movimentadas ruas de comércio do Rio de Janeiro, um cidadão, chamado Alberto, estaca de súbito, chapando a mão na testa e brecando também o seu Anjo da Guarda, que o acompanhava, como sempre, na sua correria ansiosa rumo ao ponto de seu ônibus na hora da volta do serviço.
- Diacho! Esqueci-me da panela de pressão, que a Estela pediu-me de manhã! Vai me matar se eu não levar hoje; quer fazer uma feijoada no sábado!
Paciente e solícito, o Anjo sussurrou-lhe a solução de emergência, para aquela hora em que o comércio já ia fechando: os camelôs. Ultimamente, não havia o que não vendessem, e sempre fechavam suas barracas bem mais tarde que os lojistas.
Devidamente inspirado pela sugestão, Alberto lembrou-se: um camelô que vira próximo ao Largo da Carioca! Disparou para lá, dando meia-volta. E, no seu encalço, o sempre bem disposto Anjo.
Quando alcançou o dito camelô, ansioso por resolver a questão, foi direto sacando da carteira recheada bem diante dos olhos redondos do vendedor da barraca que se dispunha a atendê-lo, e que foi logo arreganhando um sorriso reluzente à vista do maço de cifrões.
Após rápido exame nas variedades das panelas, Alberto começou:
- Meu chefe, esta panela de pressão aqui é das boas! - comentou, ingenuamente, apontando - Qual o preço?
- Cento e cinqüenta reais...desfechou o homem, sem titubear, nem no preço, nem no irremovível sorriso Colgate.
- Muito caro! - sussurou o Anjo a Alberto, cutucando-o imperceptivelmente - É um ladrão! O preço real da panela é cinqüenta reais a menos que isto, vamos mais adiante que...
- Compre! Pechincha maior, o senhor não acha! Além disso, o senhor tem dinheiro de sobra, não vai pesar no seu bolso, e a sua mulher merece a qualidade nos utensílios domésticos! - um outro estranho e veemente cochicho o surpreendeu.
O Anjo levantou os olhos, espantado; e só então entendeu.
Outro Anjo! E pelo jeito entendido nos negócios de comércio, ao lado do camelô que, obviamente, também tinha direito ao seu Anjo da Guarda. Como pôde passar sem perceber isto?
Ainda assim, duvidou. Nunca ouvira falar de Anjo da Guarda explorador de preços, e ocorreu-lhe que fosse, antes, um espírito zombeteiro que estivesse a atrapalhar os seus afazeres. Se fosse o caso, dar-lhe-ia o devido corretivo! Tinha autoridade para isso...
- Quem é você, infeliz?! Não perturbe o meu serviço!
- Infeliz, dobre a língua! Somos colegas! Pois protejo, aqui, o Diniz, este meu chapa!
E acachapou a mão translúcida nas costas do Diniz, que, por sua vez, enquanto ainda discutia o preço com o hesitante Alberto, sentiu um esquisito calafrio na espinha, encolhendo-se, com uma careta.
- Anjo da Guarda especulador! Esta é boa! Como pode ser Anjo, insinuando que cento e sessenta reais por esta panela ordinária e de aço inoxidável falsificado é um preço justo?!
- Cento e cinqüenta! - corrigiu o outro - E sou Anjo, sim, talvez até mais do que você! - e, abrindo a dobra da sua túnica alvinitente, exibiu, orgulhoso, as suas credenciais: uma espécie de bordado holográfico de três estrelinhas azuis. E sorriu, ao mesmo tempo, com sorriso igual ao do Diniz.
As três estrelinhas azuis, no entanto, não intimidaram o Anjo de Alberto, que logo pôs à mostra distintivo semelhante, com expressão mordaz. Eram Anjos da mesma categoria!
Entre freguês e camelô continuava a batalha verbal.
- Observe a qualidade desta tampa! Proteção dupla!
- Não me interessa a tampa, e sim a borracha e o pino de pressão!
- Pois são da melhor qualidade! Jamais alguma panela de pressão desta marca explodiu! - o vendedor teimou, persuasivo.
- Mesmo assim, muito cara! Estamos na época do Natal e das promoções, meu amigo! Cobrando um preço desse, como espera vencer a competição?!
- Não há panela desta marca por este preço em lugar nenhum da praça! - argumentou o camelô, manifestando melindrada convicção.
- Negativo! Se pelo menos saísse por uns cem, cento e vinte... - replicou Alberto, sacudindo a cabeça, veemente.
- Escuta, vamos conversar... - animou-se Diniz.
- Não! Não pague isso! Ainda assim, é uma exorbitância! - advertiu o Anjo, com energia - Vamos mais à frente, e você acha...
- Pague sim!! - e o Anjo de Diniz alvejou Alberto com seus fluídos persuasivos - Seu burguês sovina! O dinheiro que você joga fora numa semana com cigarros seria o suficiente para o Diniz comprar quilos de feijão! Não sente um peso na consciência!?? O Diniz nem sabe o que é um quilo de filé mignon, carne que o senhor consome em seu palacete todos os dias, e o dinheiro da panela vai servir para ele comprar leite para os seis filhos!
- Pare com isso, idiota! Alberto não é rico, e ganha seu dinheiro com trabalho honesto, e não explorando os outros!
- Exploração é sonegar dinheiro de uma reles panela que significa leite pras crianças, para depois desperdiçá-lo com mais de vinte maços de cigarros por mês! Estou protegendo os dois, no fim das contas, e você é que me deve agradecer por melhorar o seu serviço mal feito!
- Sei dos interesses do meu protegido, e quem o protege sou eu! Pare de atrapalhar, ou vou fazer queixa na Central Cósmica dos Serviços de Proteção!
- Se eu parar de atrapalhar, não estarei protegendo o meu protegido, e aí é que a Central vai me crucificar!
- Pois para que a Central não crucifique a MIM, devo, por todos os meios, afastá-lo deste seu protegido usurpador! Alberto!! Ouve!! - exclamou, imperativo, impondo-lhe as mãos sobre a cabeça, que se revestiu progressivamente de uma forma particular de energia, que fê-lo suster, de súbito, o barulhento blá-blá-blá com o vendedor.
- Alberto!! Não ouve!! - berrou o outro Anjo, impondo também suas mãos.
A turbulência energética provocou em Alberto repentina e esquisita zonzeira; e o seu Anjo, irritado, dirigiu uma das mãos para Diniz, que cessara de falar, aturdido com a expressão apatetada que tomou conta da fisionomia do freguês.
- Diniz!! Com todos os Santos!! Ganhe a vida honestamente!! O preço real desta panela é oitenta reais!! Baixe este preço, ó pecador ambicioso, e não explore o irmão!!
- Alberto!! Sua mulher precisa da panela, e Diniz deste dinheiro, muito mais do que você!! Abra a carteira, ó mão de vaca!!
- Hoje é o prazo que me conferirá tempo de serviço para promoção a Arcanjo!! Não vou deixar tudo ir por água abaixo pela sua petulância, seu Anjo subversivo!!! - exclamou o Anjo de Alberto, triplicando a carga fluídica sobre o protegido e sobre Diniz; no que o outro, ferrenho, o imitou.
Agora Alberto se apoiava na prateleira, suarento, dominado por náuseas, enquanto Diniz sucumbia a repentina enxaqueca.
Uma súbita explosão fluídica abafou os dois Anjos, que desapareceram. Diniz e Alberto voltaram aos poucos ao normal. O último se afastou, finalmente, sem mais uma palavra, atordoado e confuso, deixando a panela para uma outra hora.
No céu, muito acima das nuvens, dois Anjos, meio zonzos, recebiam de um Arcanjo Mestre complacente a notificação de que freqüentariam, por um ano, um curso: "Como Proteger em Grupo"."
(1986)
Com amor,
DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS. PROIBIDA A REPRODUÇÃO, CÓPIA OU PUBLICAÇÃO SEM A AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DA AUTORA.
Transcrevo uma anedota de Alahnat Rosemberg, sobre os anjos da guarda.
O humor também é necessário nos assuntos transcendentais. Por intermédio dele, muitas lições espirituais são transmitidas de forma leve e divertida.
"Na calçada de uma das mais movimentadas ruas de comércio do Rio de Janeiro, um cidadão, chamado Alberto, estaca de súbito, chapando a mão na testa e brecando também o seu Anjo da Guarda, que o acompanhava, como sempre, na sua correria ansiosa rumo ao ponto de seu ônibus na hora da volta do serviço.
- Diacho! Esqueci-me da panela de pressão, que a Estela pediu-me de manhã! Vai me matar se eu não levar hoje; quer fazer uma feijoada no sábado!
Paciente e solícito, o Anjo sussurrou-lhe a solução de emergência, para aquela hora em que o comércio já ia fechando: os camelôs. Ultimamente, não havia o que não vendessem, e sempre fechavam suas barracas bem mais tarde que os lojistas.
Devidamente inspirado pela sugestão, Alberto lembrou-se: um camelô que vira próximo ao Largo da Carioca! Disparou para lá, dando meia-volta. E, no seu encalço, o sempre bem disposto Anjo.
Quando alcançou o dito camelô, ansioso por resolver a questão, foi direto sacando da carteira recheada bem diante dos olhos redondos do vendedor da barraca que se dispunha a atendê-lo, e que foi logo arreganhando um sorriso reluzente à vista do maço de cifrões.
Após rápido exame nas variedades das panelas, Alberto começou:
- Meu chefe, esta panela de pressão aqui é das boas! - comentou, ingenuamente, apontando - Qual o preço?
- Cento e cinqüenta reais...desfechou o homem, sem titubear, nem no preço, nem no irremovível sorriso Colgate.
- Muito caro! - sussurou o Anjo a Alberto, cutucando-o imperceptivelmente - É um ladrão! O preço real da panela é cinqüenta reais a menos que isto, vamos mais adiante que...
- Compre! Pechincha maior, o senhor não acha! Além disso, o senhor tem dinheiro de sobra, não vai pesar no seu bolso, e a sua mulher merece a qualidade nos utensílios domésticos! - um outro estranho e veemente cochicho o surpreendeu.
O Anjo levantou os olhos, espantado; e só então entendeu.
Outro Anjo! E pelo jeito entendido nos negócios de comércio, ao lado do camelô que, obviamente, também tinha direito ao seu Anjo da Guarda. Como pôde passar sem perceber isto?
Ainda assim, duvidou. Nunca ouvira falar de Anjo da Guarda explorador de preços, e ocorreu-lhe que fosse, antes, um espírito zombeteiro que estivesse a atrapalhar os seus afazeres. Se fosse o caso, dar-lhe-ia o devido corretivo! Tinha autoridade para isso...
- Quem é você, infeliz?! Não perturbe o meu serviço!
- Infeliz, dobre a língua! Somos colegas! Pois protejo, aqui, o Diniz, este meu chapa!
E acachapou a mão translúcida nas costas do Diniz, que, por sua vez, enquanto ainda discutia o preço com o hesitante Alberto, sentiu um esquisito calafrio na espinha, encolhendo-se, com uma careta.
- Anjo da Guarda especulador! Esta é boa! Como pode ser Anjo, insinuando que cento e sessenta reais por esta panela ordinária e de aço inoxidável falsificado é um preço justo?!
- Cento e cinqüenta! - corrigiu o outro - E sou Anjo, sim, talvez até mais do que você! - e, abrindo a dobra da sua túnica alvinitente, exibiu, orgulhoso, as suas credenciais: uma espécie de bordado holográfico de três estrelinhas azuis. E sorriu, ao mesmo tempo, com sorriso igual ao do Diniz.
As três estrelinhas azuis, no entanto, não intimidaram o Anjo de Alberto, que logo pôs à mostra distintivo semelhante, com expressão mordaz. Eram Anjos da mesma categoria!
Entre freguês e camelô continuava a batalha verbal.
- Observe a qualidade desta tampa! Proteção dupla!
- Não me interessa a tampa, e sim a borracha e o pino de pressão!
- Pois são da melhor qualidade! Jamais alguma panela de pressão desta marca explodiu! - o vendedor teimou, persuasivo.
- Mesmo assim, muito cara! Estamos na época do Natal e das promoções, meu amigo! Cobrando um preço desse, como espera vencer a competição?!
- Não há panela desta marca por este preço em lugar nenhum da praça! - argumentou o camelô, manifestando melindrada convicção.
- Negativo! Se pelo menos saísse por uns cem, cento e vinte... - replicou Alberto, sacudindo a cabeça, veemente.
- Escuta, vamos conversar... - animou-se Diniz.
- Não! Não pague isso! Ainda assim, é uma exorbitância! - advertiu o Anjo, com energia - Vamos mais à frente, e você acha...
- Pague sim!! - e o Anjo de Diniz alvejou Alberto com seus fluídos persuasivos - Seu burguês sovina! O dinheiro que você joga fora numa semana com cigarros seria o suficiente para o Diniz comprar quilos de feijão! Não sente um peso na consciência!?? O Diniz nem sabe o que é um quilo de filé mignon, carne que o senhor consome em seu palacete todos os dias, e o dinheiro da panela vai servir para ele comprar leite para os seis filhos!
- Pare com isso, idiota! Alberto não é rico, e ganha seu dinheiro com trabalho honesto, e não explorando os outros!
- Exploração é sonegar dinheiro de uma reles panela que significa leite pras crianças, para depois desperdiçá-lo com mais de vinte maços de cigarros por mês! Estou protegendo os dois, no fim das contas, e você é que me deve agradecer por melhorar o seu serviço mal feito!
- Sei dos interesses do meu protegido, e quem o protege sou eu! Pare de atrapalhar, ou vou fazer queixa na Central Cósmica dos Serviços de Proteção!
- Se eu parar de atrapalhar, não estarei protegendo o meu protegido, e aí é que a Central vai me crucificar!
- Pois para que a Central não crucifique a MIM, devo, por todos os meios, afastá-lo deste seu protegido usurpador! Alberto!! Ouve!! - exclamou, imperativo, impondo-lhe as mãos sobre a cabeça, que se revestiu progressivamente de uma forma particular de energia, que fê-lo suster, de súbito, o barulhento blá-blá-blá com o vendedor.
- Alberto!! Não ouve!! - berrou o outro Anjo, impondo também suas mãos.
A turbulência energética provocou em Alberto repentina e esquisita zonzeira; e o seu Anjo, irritado, dirigiu uma das mãos para Diniz, que cessara de falar, aturdido com a expressão apatetada que tomou conta da fisionomia do freguês.
- Diniz!! Com todos os Santos!! Ganhe a vida honestamente!! O preço real desta panela é oitenta reais!! Baixe este preço, ó pecador ambicioso, e não explore o irmão!!
- Alberto!! Sua mulher precisa da panela, e Diniz deste dinheiro, muito mais do que você!! Abra a carteira, ó mão de vaca!!
- Hoje é o prazo que me conferirá tempo de serviço para promoção a Arcanjo!! Não vou deixar tudo ir por água abaixo pela sua petulância, seu Anjo subversivo!!! - exclamou o Anjo de Alberto, triplicando a carga fluídica sobre o protegido e sobre Diniz; no que o outro, ferrenho, o imitou.
Agora Alberto se apoiava na prateleira, suarento, dominado por náuseas, enquanto Diniz sucumbia a repentina enxaqueca.
Uma súbita explosão fluídica abafou os dois Anjos, que desapareceram. Diniz e Alberto voltaram aos poucos ao normal. O último se afastou, finalmente, sem mais uma palavra, atordoado e confuso, deixando a panela para uma outra hora.
No céu, muito acima das nuvens, dois Anjos, meio zonzos, recebiam de um Arcanjo Mestre complacente a notificação de que freqüentariam, por um ano, um curso: "Como Proteger em Grupo"."
(1986)
Com amor,
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