Um estranho motim
Diariamente somos surpreendidos por inusitados acontecimentos que fazem parte do cotidiano moderno.
O que passo a relatar ocorreu em São Paulo, num escritório, onde uma moça, um tanto estabanada, trabalhava sozinha no silêncio de sua reflexão.
Era tarde da noite. A jovem labutava no micro, rodeada por textos, apostilas, livros, cadernos enfim, uma gama de material relacionado à pesquisa em que estava totalmente envolvida. Elaborava um trabalho acadêmico bastante instigante e que lhe absorvia toda atenção.
Bom salientar que a jovem em questão não era possuidora de muitas habilidades na informática, aventurando-se sempre que precisava realizar alguma manobra mais complicada, o que a fazia sentir-se, de certa forma, perdida e desamparada uma vez que não tinha facilidade alguma neste particular.
Empolgada com seus estudos e pesquisas na internet, viu-se em dado momento envolvida com questões que lhe atormentavam o espirito e que exigiam respostas para que pudesse dar prosseguimento ao trabalho.
Então teve a brilhante idéia de solicitar ajuda de um amigo internauta. Enviou-lhe um e-mail e, por obra do destino, que aparentemente a protegia, este amigo encontra-se online e logo entrou no ICQ, onde puderam conversar em tempo real.
A jovem animada sentia-se feliz reconhecendo as vantagens do tempo em que vivia, deslumbrada pelos recursos que a modernidade lhe oferecia.
Seu amigo, um professor universitário de Santa Catarina, muito simpático, apreciava ajudá-la quando a oportunidade surgia.
Após os cumprimentos de praxe e troca de saudações, nossa jovem protagonista explica o impasse em que se encontra e inicia um relato do trabalho que estava compondo, e sua angústia por estar lutando contra o tempo e esbarrando em algumas impossibilidades de prosseguir, em face de ausência de algumas informações vitais. Um tanto temerosa partilha sua aflição pelo prazo estreito que possui para o término da pesquisa.
Solícito, seu amigo, a tranqüiliza e se dispõe a acompanhá-la neste momento difícil.
Durante algum tempo tudo correu bem e o mestre passava esclarecimentos preciosos à sua pupila distante, porém muito aplicada. Quando menos espera, sua conexão cai. Ela se apavora, mais que depressa reinicia seu micro na esperança de que o professor não a abandonasse logo agora que estavam no cerne da questão.
Ao retornar, o professor ainda se encontrava lá, e ao saber do ocorrido retomou sua orientação. Mais uma vez, após alguns minutos, a conexão cai.
Esta foi a gota dágua que praticamente tirou a jovem do sério. Afobadamente reiniciou a máquina. Estava cansada, pois trabalhava há mais de 6 horas, tendo ao seu lado um lanche que nem sequer havia tocado, tão envolvida estava nesta atividade.
Ao encontrar o amigo ainda disponível, desesperada pediu que o mesmo resumisse sua orientação com urgência, pois estava claro que não conseguiriam permanecer muito tempo em contato, devido à instabilidade do provedor que a mantinha online.
Tal era sua angústia frente à possibilidade de perder contato com o mestre que se afobou a tomar nota das orientações. Mais que depressa puxou o caderno com a intenção de anotar alguns sites indicados pelo mestre para serem consultados. Ocorre que a caneta estava enganchada em um texto que por sua vez estava sob um livro que continha sobre ele um copo de limonada, segurando a página aberta...
Neste exato momento ouve-se um barulho considerável.
Cai a conexão.
Como se fosse ensaiado, num segundo tudo acontece. Os objetos que repousavam na mesa como por encanto despencam abruptamente esparramando-se pelo tapete...
No mesmo instante, a jovem que tenta segurar alguma coisa, na vã tentativa de amenizar o estrago, vira-se bruscamente caindo da cadeira, e no tombo sem se dar conta larga o mouse, que pende movimentando-se alucinadamente de lá para cá, como se buscasse acertar o ritmo da "sinfonia" que invadia o ambiente...Mas sem conseguir acertar-se a ela.
Na queda, nossa jovem agarra-se na ponta da mesa e completa assim o desastre, garantindo que nada ficasse onde estava.
Silêncio. Nada se ouvia. O mouse nem mais se mexia, o micro havia travado, e tudo no escritório permanecia estático.
A moça sentada no chão, rodeada de papéis, canetas, blocos, livros e revistas...Tudo na mais caótica desordem que se pode imaginar. Atônita ela reage e tenta recolher tudo à sua volta sem acreditar no que via.
Seus textos estavam ensopados pela limonada que escorria ainda pelas dobras das apostilas. O livro apresentava uma enorme mancha de katchup mesclada de mostarda caminhando entre as sábias idéias que lá repousavam inocentes. Uma das revistas permitia, sem importar-se com seu estado de desespero, que um borrão fosse ganhando espaço ocupando praticamente a página inteira...
Inconformada a jovem implorava aos objetos que a cercavam que a compreendessem, que não fizessem assim, que parassem de se destruir, como se fosse natural com eles conversar. Mas para seu total desconsolo, não havia qualquer reação positiva aos seus apelos.
Por fim, percebe que tudo estava perdido. Os textos, livros, anotações, listas de endereço e orientações do mestre...Enfim...Tudo estava irremediavelmente perdido!
Sem mais reagir, levanta-se vagarosamente sentindo como se carregasse o mundo nos ombros. Olha a cena quase dantesca que se lhe apresenta e retira-se pensando em como a modernidade podia ser tão perversa. Acenando com facilidades e seduzindo com recursos fascinantes, em segundos promovia um motim... Impondo ao ser humano sua própria fragilidade!
Priscila de Loureiro Coelho
Consultora de Desenvolvimento de Pessoas